Em 1980 foi celebrada, seguramente uma das grandes conquistas da medicina moderna- a erradicação da varĆola. Esta doenƧa infectocontagiosa, altamente contagiosa, inclusive por via aĆ©rea, caracterizada por febre, uma erupção cutĆ¢nea vesiculopustulosa caracterĆstica (daĆ o nome inglĆŖs de smallpox, sendo o sufixo pox o equivalente ao termo portuguĆŖs ābexigasā) e muitas vezes uma evolução em sepsis frequentemente fatal (atĆ© 30% dos casos) causou a morte a mais de 300 milhƵes de pessoas nos Ćŗltimos 100 anos.Ā
Com uma campanha de vacinação em massa bem-sucedida, e aproveitando particularidades do vĆrus, o Ćŗltimo caso da temida doenƧa foi notificado em 1977, permanecendo apenas amostras do vĆrus em laboratórios nos EUA e na RĆŗssia. Permanece, no entanto, o espectro do seu uso eventual como arma bioterrorista, e que leva a que se mantenham stocks de vacina e que se mantenha a investigação em novas vacinas e antivirais para esta doenƧa.
No entanto, a varĆola estĆ” longe de ser o Ćŗnico vĆrus do grupo poxvirus existente, embora fosse seguramente de longe o mais virulento para a espĆ©cie humana. Este tipo de vĆrus pode infetar uma espĆ©cie eletivamente, e com alta letalidade (varĆola nos humanos, mixomatose no coelho, varĆolas suĆnas e caprinas) ou comportar-se mais como generalistas, com possibilidade de infetar diversas espĆ©cies (vaccinia, monkeypox).
Um dos vĆrus deste grupo que tem originado frequentemente infeƧƵes em humanos tem sido o da varĆola dos macacos (monkeypox em inglĆŖs). Trata-se de um vĆrus descoberto em 1958 durante um surto de uma doenƧa tipo varĆola em macacos mantidos em cativeiro (Von Magnus, Dinamarca).
O primeiro caso em humanos foi registado na dĆ©cada de 70 e o vĆrus parece ter beneficiado da erradicação da varĆola e da cessação da vacinação para esta doenƧa pois tem evoluĆdo de forma endĆ©mica em Ćfrica onde se diferenciou em duas estirpes (Congo, com uma letalidade que se cita em 10% e Ćfrica Ocidental, muito menos letal).
De facto, a barreira de espĆ©cies Ć© em grande medida imunológica (nĆ£o apanhamos facilmente os vĆrus animais porque jĆ” contactamos antes com vĆrus anĆ”logos espalhados na população humana).
A erradicação da varĆola abriu assim as portas a infeƧƵes por poxvirus animais, embora de gravidade incomparavelmente menor! Classicamente a infeção pela varĆola dos macacos ocorre no continente africano, muitas vezes após contacto estreito com animais (note-se que ao contrĆ”rio do que o nome indica os principais hospedeiros parecem ser roedores /esquilos, mais do que sĆmios, embora estes Ćŗltimos possam ser gravemente afetados, inclusive com surtos epidĆ©micos).
Mais recentemente, em 2003, houve um surto nos EUA ligado a cĆ£es-da-pradaria mantidos no distribuidor juntamente com roedores africanos que se veio a comprovar estarem contaminados com este vĆrus. A doenƧa evolui com febre, um exantema (erupção cutĆ¢nea) semelhante a varicela ou varĆola e aumento acentuado dos gĆ¢nglios linfĆ”ticos ā Ć© particularmente severa em crianƧas e grĆ”vidas.Ā
A vacina antivariólica parece ser protetora em até 85% (note-se que dada a raridade destas situações e as graves complicações habituais com esta vacina- a mais clÔssica das quais é a encefalite em cerca de 1-2 por cada cem mil vacinados- não se considerou a relação beneficio-risco favorÔvel pelo que não continua a ser administrada).
Foram, entretanto, melhoradas as formulaƧƵes vacinais disponĆveis, nomeadamente com vacinas nĆ£o replicativas que poderĆ£o ser mais bem toleradas. Neste momento estĆ” em curso um surto deste agente com casos em todo o Mundo, inclusive no nosso paĆs (138 casos em 2/6/22).
As caracterĆsticas deste surto sĆ£o altamente atĆpicas ā trata-se de jovens homossexuais masculinos ou bissexuais, com lesƵes genitais e perianais que fazem supor uma inoculação local do vĆrus, sendo a taxa de complicaƧƵes atĆ© ver muito baixa e a letalidade inexistente. Com efeito a transmissĆ£o deste vĆrus parece ser muito menos eficiente do que a da varĆola ā sendo as vias habituais o contacto pele com pele ou contacto com objetos contaminados (roupas interiores ou de cama por exemplo) ā fomites ā nos quais o vĆrus pode persistir por semanas. Parece tambĆ©m existir uma componente atĆ© agora nĆ£o descrita de transmissĆ£o sexual. Obviamente que os heterossexuais nĆ£o serĆ£o imunes, sendo o maior fator de risco a promiscuidade das relaƧƵes, pelo que importa alertar sem estigmatizar as pessoas, a fim de que qualquer caso seja rapidamente isolado
Portanto, trata-se de uma situação a acompanhar, sem pânico, sem alarmismos nem falsos moralismos que serão mais prejudicais do que úteis.
Tiago Marques (mƩdico infeciologista)