As recentes declaraƧƵes do Embaixador do Mundial de Futebol do Catar, em que classifica a homossexualidade como ādistĆŗrbio mentalā, tĆŖm levantado indignação. No entanto, mais do que isso, elas chamam a atenção para a hipocrisia que atualmente assola o mundo ocidental, muito influenciado pelo movimento woke.Ā
Numa altura, em que quase tudo que saia fora da esfera do politicamente correto Ć© levianamente catalogado, por exemplo, de racista, homofóbico ou machista, e a polĆtica de censura e ācancelamentosā impera, o Mundial decorrerĆ” num paĆs em que, de facto, os direitos humanos bĆ”sicos nĆ£o sĆ£o respeitados e a discriminação estĆ” presente na própria lei.
O wokismo
De uma forma resumida, o wokismo representa uma visĆ£o identitĆ”ria que proclama que todas (ou quase todas) as diferenƧas entre grupos resultam de formas de opressĆ£o. SĆ£o ignorados inĆŗmeros fatores relevantes nos āoutcomesā (desempenhos/resultados) de um determinado grupo, como as diferenƧas biológicas entre sexos, a cultura, a educação, a geografia, o passado socioeconómico, entre muitos outros.
Para suportar essa hiper simplificação da realidade e se construir uma narrativa apelativa, recorrem-se a relatos anedóticos dramĆ”ticos, com uma mediatização desproporcional, e a visƵes de acadĆ©micos de Ć”reas humanas e sociais (cada vez mais ocupadas por movimentos pseudocientĆficos e de ativismo ideológico).Ā
NĆ£o Ć©, pois, de estranhar o facto do wokismo estar intimamente associado ao apoio Ć censura e ao cancelamento de quem contraria as suas teses. A ideologia woke só sobrevive e prospera, se forem ignorados dados históricos e cientĆficos que a desmontam. Por isso, a liberdade de expressĆ£o Ć© encarada como um perigo.Ā
Defesa das minorias ou estratƩgia de poder?
Um dos aspetos mais reveladores Ć© o facto dos seus proponentes raramente se centrarem em dados reais sobre discriminaƧƵes, monitorizarem a sua evolução ou avaliarem o efeito das polĆticas seguidas. Todas as abordagens mais rigorosas e cientĆficas sĆ£o liminarmente rejeitadas. A retórica sobrepƵe-se sempre ao que deveria ser o mais importante, ou seja, assegurar que se usam formas eficazes de mitigar as injustiƧas que possam existir.
Além disso, apesar de todo o puritanismo e utopia que caracteriza este movimento, vÔrias outras formas de discriminação são menosprezadas. Tudo tem de caber nas proclamações panfletÔrias gerais e toda a tentativa de aprofundar o conhecimento sobre cada situação em concreto é, muitas vezes, encarada como uma inaceitÔvel tentativa de minimização. Também os apelos a uma sociedade justa e solidÔria para todos, sem discriminações de qualquer tipo, não são tolerados e são frequentemente atacados à luz de argumentos semelhantes.
Isto leva-me a tender a concordar com os que consideram que, quem encabeƧa este tipo de movimento, tem normalmente como objetivo, nĆ£o tanto a luta contra as injustiƧas sociais, mas a conquista de poder e influĆŖncia em diferentes patamares (corporativo, polĆtico, acadĆ©mico e outros).Ā
Hipocrisia woke
Mas, se a forma como estas causas sĆ£o usadas oportunisticamente podem ser criticĆ”veis, as causas em si nĆ£o o sĆ£o. Tal como com muitas outras formas de discriminação, todos devemos contribuir para as denunciar, mitigar e, se possĆvel, eliminar.
Seria de pensar que aqueles que encabeçam o movimento woke e que tão moralistas são com qualquer comportamento que, à luz da sua ideologia, consubstancia uma forma de opressão, tivessem tolerância zero para aqueles que de forma objetiva a fazem objetivamente.
Infelizmente, nĆ£o Ć© o caso.Ā
O movimento woke centra-se essencialmente no mundo ocidental. Em relação a outras sociedades, em que, aĆ sim, existem comprovadamente repetidas violaƧƵes graves de direitos humanos e vĆ”rias formas sistĆ©micas de discriminação (inclusive inscritas na lei), a indignação dos āguerreiros sociaisā tende, surpreendentemente, a perder forƧa.
O exemplo do mundial do Qatar
O mundial de futebol que se realizarĆ” em breve Ć© a mais recente demonstração da hipocrisia que reina no mundo ocidental.Ā
No Catar, os imigrantes trabalham em condiƧƵes sub-humanas. As mulheres sĆ£o tuteladas pelos homens e discriminadas de vĆ”rias formas (muitas delas Ć luz da lei). A homossexualidade Ć© considerada um crime, que pode ser punido atĆ© sete anos de prisĆ£o. No entanto, a FIFA, que tal como a generalidade das multinacionais, proclama constantemente ātolerĆ¢ncia zero Ć discriminaçãoā escolhe, para o maior evento do ano, esse paĆs que, nĆ£o só a tolera, como a promove.

TambĆ©m as empresas que acenam a bandeira da luta contra as injustiƧas e, em alguns casos, sujeitam os seus trabalhadores a formação antidiscriminação devido ao āenviesamento inconscienteā (que, supostamente, nos assola a todos) sĆ£o as que, de forma āconscienteā se calaram perante esta escolha e patrocinam o evento.

Governos, polĆticos, dirigentes ā quase todos se calaram. Isso, ao contrĆ”rio, do que fazem nos seus paĆses, em que sempre que a oportunidade surge, aparecem como os maiores lutadores contra as discriminaƧƵes estruturais que assolam (supostamente) o mundo ocidental.Ā
Todos esses princĆpios humanos se eclipsaram e muito poucos (ou nenhum) deles colocou a hipótese de boicotar, pessoal ou institucionalmente, o evento.
SerĆ”, pois, curioso assistirmos a cenas como a dos jogadores ingleses que se ajoelham antes dos jogos no seu paĆs, numa manifestação contra a discriminação, colocarem os seus princĆpios āde joelhosā num estĆ”dio construĆdo por trabalho quase escravo e num paĆs em que a discriminação Ć© (realmente) sistĆ©mica.
O espetĆ”culo tem de continuar e o movimento woke (manter-se desperto/acordado) tende a adormecer fora de casa. Deve ser do jet-lag.Ā
O jornalismo independente precisa da sua ajudaĀ >>Ā https://theblindspot.pt/assinaturas/
?????? ? The Blind Spot ??????? ??Ć© ?? ?? ???????? ? ??????, entre outras vantagens, ? ????? ā?????-??: ? ?????? ???????̧?Ģ?- ??? ?ā