O dilema da FranƧa

ByCristina Mestre

21 de Setembro, 2023

Ontem, liguei para o meu melhor amigo que vive em Paris. Vou sabendo por ele algumas novidades da França, mas, até agora, a minha pouca curiosidade pela política gaulesa levava sempre a conversa para temas que mais me interessavam. Temos os dois o mesmo gosto pela literatura e pela política, sem excluir um vago interesse romântico, que só se poderia concretizar, nas palavras dele, se eu enviuvasse, coisa que não se prevê nos tempos mais próximos. Dadas as contingências quanto ao romantismo, achei que ele seria uma boa fonte de informação sobre o tema que me propus tentar perceber. Nós, portugueses, temos aquela ideia de que em França hÔ sempre uma greve geral ou uma revolução a acontecer nas ruas, às quais se têm junto ultimamente coisas mais graves como carros incendiados, mas, no fim, as autoridades locais acabam sempre por levar a melhor. 

O que se passa, afinal, em FranƧa?

Eu tinha de ler ā€œSubmissĆ£oā€ de Michel Houellebecq. Quis perceber, ainda que superficialmente, o que pensam os intelectuais franceses. Depois, percorri pĆ”ginas da imprensa francesa e fiquei com a impressĆ£o de que os franceses parecem viver nos Ćŗltimos anos num conflito nĆ£o-declarado entre a maioria ā€œsecular/laicaā€ e aquilo que eles designam por ā€œcomunitarismoā€ e que corresponde, no fundo, Ć  minoria muƧulmana. Ao mesmo tempo, alguns franceses advogam o pleno direito das comunidades muƧulmanas de viverem como quiserem em FranƧa e atĆ© sugerem que, se fosse esta minoria a mandar no paĆ­s, talvez houvesse menos problemas.Ā 

Em 7 de Janeiro de 2015, quando ocorreu o atentado em Paris contra os jornalistas do Charlie Hebdo, o escritor Michel Houellebecq, assustado, adiou então a promoção do seu último romance. Ele tinha razões para isso.

ā€œA violĆŖncia atingiu limites inimaginĆ”veis. Deu-se uma ruptura entre mim e a esquerda, mas tambĆ©m hĆ” uma ruptura em FranƧa. A sensação Ć© a de que o conflito Ć© irreversĆ­vel e a guerra civil inevitĆ”vel. Isso tem mais a ver com meu livro do que com os atentados. Esse perĆ­odo dramĆ”tico ainda nĆ£o acabou. Eu esperava que meu livro incendiasse a FranƧa, mas, evidentemente, nĆ£o da maneira que aconteceu. O mais difĆ­cil de aceitar Ć© que, no fundo, os fatos sĆ£o inexplicĆ”veis. HĆ” dez anos, o nĆŗmero de muƧulmanos era o mesmo, mas falava-se pouco disso. Agora, Ć© o Ćŗnico assunto na agenda.ā€, escrevia Houellebecq em 2015.Ā 

ā€œ(O livro SubmissĆ£o) nĆ£o foi escrito exatamente para descrever o que vai acontecer, na verdade. Tem mais a ver com o que as pessoas temem que aconteƧa.ā€ – estas sĆ£o, tambĆ©m, palavras do escritor.Ā 

A obra relata um futuro fictício em que um político, o candidato da chamada Fraternidade Muçulmana, ganha as eleições presidenciais em França. Moderado e conciliador, ele começa pouco a pouco a alterar as leis. As mudanças na sociedade, no início pouco perceptíveis, acabam por atingir tudo e todos. Um professor da Sorbonne é despedido, tal como muitos outros, e as aulas são interrompidas.  

Ideia provocatória

ā€œO auge da felicidade humana reside na submissĆ£o mais absolutaā€. Esta frase de um personagem da obra de Houellebecq deixou-me perplexa. Após sĆ©culos de jacobinismo e agnosticismo, eu nunca pensei ouvir uma tal ideia provocatória da boca de um francĆŖs.

O protagonista, um professor universitĆ”rio, descreve o que observa Ć  sua volta depois das eleiƧƵes do presidente muƧulmano. ā€œA implosĆ£o brutal do sistema de oposição binĆ”ria, centro-esquerda/centro-direita, que estruturava a vida polĆ­tica francesa desde tempos imemoriais, primeiro tinha mergulhado toda a imprensa num estado de torpor, depois, de afasia. (…) o ambiente geral continuou a ser o de uma aceitação tĆ”cita e suave. O mais espantoso era que a magia hipnótica que o presidente disseminava desde o inĆ­cio continuava a funcionar, e os seus projetos nĆ£o esbarravam em nenhuma oposição sĆ©ria (…). Essa Europa que estava no auge da civilização humana realmente suicidou-se, no espaƧo de algumas dĆ©cadas (…), mas creio que agora, com o IslĆ£o, chegou o momento de uma acomodação, de uma alianƧa.ā€

Inesperadamente no fim, François, o professor, converte-se ao Islão para ser readmitido na Sorbonne e manter, assim, o seu trabalho.

Ataque do obscurantismo e do comunitarismo?

A previsĆ£o de Houellebecq quanto Ć  submissĆ£o nĆ£o se verificou. Hoje, em FranƧa, pelo contrĆ”rio, Ć© visĆ­vel uma nova onda de rejeição do chamado ā€œcomunitarismoā€ muƧulmano no paĆ­s. HĆ” poucas semanas, o governo francĆŖs proibiuĀ  os estudantes muƧulmanos de usarem na escola pĆŗblica a sua roupa tradicional (a abaya, uma longa tĆŗnica que cobre todo o corpo das raparigas e o qamis, a versĆ£o masculina), consideradas pelo governo como tendo conotaƧƵes religiosas e, por isso, contrĆ”rias Ć  lei sobre o secularismo nas escolas.

Segundo a nova lei, da iniciativa do atual ministro da Educação Nacional,Ā ā€œĆ© proibido o uso de sinais ou roupas atravĆ©s das quais os alunos manifestem ostensivamente uma filiação religiosaā€ nas escolas pĆŗblicas.

ā€œNĆ£o podemos agir como se nĆ£o tivesse havido um ataque terrorista e o assassinato de Samuel Paty no nosso paĆ­sā€,disse Macron sobre a proibição da abaya durante uma conversa com um youtuber.Ā Recorde-se que o professor Samuel Paty foi assassinado Ć  porta de uma escola após ter mostrado os cartoons do profeta MaomĆ© na sala de aula.Ā E Eric Ciotti, presidente do Partido Republicano, afirmou, por sua vez que

ā€œO comunitarismo Ć© uma lepra que ameaƧa a RepĆŗblica.ā€.

Uma cronista no jornal Le Figaro afirma que Ć© necessĆ”rio defender os valores da RepĆŗblica contra o ataque do obscurantismo e do comunitarismo – palavras estas que sĆ£o hoje muito ouvidas hoje em FranƧa.Ā 

Mas tambĆ©m Marine Le Pen comentou a proibição do uso da abaya nas escolas, Ā ā€œO general MacArthur disse que as batalhas perdidas podem ser resumidas em duas palavras: tarde demais. Ter sabido tarde demais, ter entendido tarde demais, ter agido tarde demais. Por isso, acho difĆ­cil ficar fascinada com a implementação de uma medida que deveria estar em vigor desde a aprovação da lei de 2004 sobre sĆ­mbolos religiosos nas escolas.ā€. E acrescenta que ā€œĆ‰ preciso preservar o ensino de qualquer pressĆ£o comunitĆ”ria.ā€.

JĆ” os deputados do seu partido (RN) apoiam a lei mas afirmam que, ā€œsem parar a imigração, Ć© como esvaziar o mar com uma colherā€, como disse o deputado GrĆ©goire de Fournas.Ā 

A esquerda estĆ” dividida sobre o tema. Deputados socialistas e comunistas afirmam que a esquerda precisa de ter coragem para defender a laicidade. Defender estas posiƧƵes nĆ£o significa ser islamofóbico, afirmam. JĆ” o partido de esquerda FranƧa Insubmissa (que nome interessante!), de Jean-Luc MĆ©lenchon, Ć© contra a proibição.Ā  Em junho passado, ele afirmou que a abaya nĆ£o tem ā€œnada a ver com religiĆ£oā€.

O que dizem os defensores

A abaya Ć©, segundo os seus defensores, apenas um vestido comprido modesto com o qual as mulheres se sentem confortĆ”veis. Ɖ uma roupa ā€œtradicionalā€ e nĆ£o uma vestimenta ā€œreligiosaā€ e o governo deve reconhecer e respeitar a diversidade cultural e religiosa.Ā 

Compreensivelmente, os paĆ­ses Ć”rabes insurgem-se contra a nova lei. Nos EUA, tambĆ©m hĆ” crĆ­ticos.Ā ā€œA FranƧa continua a usar uma interpretação especĆ­fica do secularismo para atingir e intimidar grupos religiosos, especialmente muƧulmanosā€, declarou a ComissĆ£o dos EUA sobre Liberdade Religiosa Internacional, um órgĆ£o consultivo do governo.

Alguns autores na imprensa francesa falam mesmo de ā€œhumilhaçãoā€ e de ā€œuma verdadeira estigmatizaçãoā€ dos alunos, afirmando que se trata de islamofobia.Ā 

A jornalista Fatiha Boudjahlat do jornal Le Figaro, respondeĀ  a esta afirmação escrevendo que ā€œOs defensores desta acusação de islamofobia estatal e sexismo querem fogo. Os Ćŗltimos tumultos nĆ£o saciaram a sua sede de destruição nem esgotaram as suas fantasias de uma grande noite contra a RepĆŗblica.ā€.

Na imprensa francesa dos Ćŗltimos meses, a voz dos que criticam a nova lei e fazem apelo Ć  tolerĆ¢ncia estĆ” muito presente. No entanto, a realidade e os Ć¢nimos na sociedade parecem ser diferentes dos da imprensa.Ā Cerca de 81% dos franceses, tanto de esquerda quanto de direita – exceto os que militam nos partidos da esquerda radical – aprovam a proibição da abaya nas escolas, de acordo com uma sondagem recente.

Também segundo dados do Pew Research Center, os muçulmanos constituem 8,8% da população da França, totalizando 5,7 milhões de pessoas, mas a população muçulmana em alguns países europeus pode triplicar até 2050, mesmo que todos os atuais 28 Estados-membros da União Europeia fechem completamente as suas fronteiras aos imigrantes. 

Estes dados e uma grande percentagem de aprovação da recente proibição que, sejamos claros, visa limitar a crescente influĆŖncia da comunidade muƧulmana, significam que a FranƧa pode muito bem, após as novas eleiƧƵes presidenciais, iniciar uma nova era – a era do fim do multiculturalismo, que serĆ” tambĆ©m uma era de conflitos abertos entre os dois modelos incompatĆ­veis de sociedade.

Cristina Mestre, psicóloga e tradutora