O Manifesto Ordine e a «Paixão» de Martin Buber, para vencer a obsolescência humana

ByMónica Rodrigues

5 de Maio, 2023

Quem não conhece história está condenado a repeti-la. Pode o homem ficar obsoleto? O avanço daquele projeto do «Grande Reset», anunciado ao mundo no verão de 2021, parece ter como corolário a obsolescência humana. Pois bem, penso exatamente o contrário. Nem precisamos da reiniciação do mundo distópica – a ideia do «Homem de Davos» tem origem na plataforma público-privada do Clube de Roma, o Fórum Económico Mundial, nem temos de aceitar a despromoção do homem à categoria de «excrescência» planetária. Bem pelo contrário, não só o Manifesto Ordine como a «Paixão» de Buber podem ser o «salvo conduto» para a revalorização do Homem e da Vida Humana. Vejamos como.

Por um lado, o Manifesto Ordine defende que aqueles saberes sem vínculo tecnocrático e inúteis numa perspetiva utilitária, nunca perdem valor na medida em que alimentam o espírito e orientam a procura do caminho em direção ao «bem» e, por isto mesmo, possibilitam a reactualização humana em prol do bem comum.  Aconselho vivamente a leitura de Nuccio Ordine, um filósofo contemporâneo, porque hoje, sobretudo hoje e mais do que nunca, liberta-nos da ditadura da «sustentabilidade», do lucro e do utilitarismo, ou seja, de tudo o que é monetarizado ou fornece uma compensação material. Porque, se já teve a ocasião para parar e compreender a distopia em que nos querem digitalizar, acredito que, como tantos outros, o risco que corremos é o da extinção a prazo. E não se iluda, porque bastam poucas gerações … Esta tese é tanto mais importante se reconhecermos, com honestidade, que se trata de um grito contra a corrupção, condensada num tríptico já bem conhecido do senhor leitor e que dispensa apresentação – ganância, dinheiro e poder. O filósofo italiano, resistindo à lógica «só o que dá lucro é bom», defende a utilidade da inútil literatura, assim como o mundo do ensino, da investigação e das atividades culturais devem ser resgatados daquela lógica, evitando assim a «prostituição da sapiência» e a «ilusão da riqueza».

Se ainda não consegui transmitir a relação entre o manifesto e a atualidade, passo então a recordar que, no momento atual, distanciamo-nos cada vez mais do Manifesto Ordine. Aliás, quer o «atraso» intolerável na distribuição de conhecimento, para citar uma expressão feliz de Jorge Bravo no seu blogue «Cinco Lusos Oceanos», quer a tão propalada «grande reinicialização», vendida como o «zénite» da evolução humana, concorrem para transformar a quarta  revolução industrial num verdadeiro «cisne negro», um desastre humano com consequências devastadoras de proporção estratégica – a marginalização humana face à sociedade e ao trabalho, e acantonamento em «guetos felizes», fundamentados  numa nova ideologia de ordenamento do território e de gestão urbana, como é o projeto «The Line». Ah! Nunca ouviu falar dele? Pois, fica aqui uma «oportunidade de melhoria» – investigar o megaprojeto da Arábia Saudita – um edifício único de 170 km no deserto.

Por outro lado, Martin Buber tem aquele condão de atrair todos os não crentes e crentes em torno da ideia central como a empatia na comunicação interpessoal ao longo da vida. Como tão bem nos explica, os seres humanos definem-se por dois pares de palavras – Eu-Isso e Eu-Tu. Mas é este último que descreve o mundo das relações experienciadas, isentas de qualquer tentativa de redução do ser humano a um mero objeto. Aliás, este filósofo austríaco hassídico abre uma janela no mundo distópico em que nos querem confinar, na medida em que, tal como ele refere, é nas relações que a vida humana encontra o sentido e, em sentido último, Deus que é o «Tu» eterno.

Independentemente de o leitor acreditar ou não no «Divino», o caráter essencial desta dupla «Eu -Tu» reside na fusão de tudo o que medeia «um» e «outro», originando um outro «Eu», sendo o tal «salvo conduto» para a revalorização do Homem e da Vida Humana

Ora, não é a digitalização do ser humano que viabiliza a essência e a dignidade da Pessoa já que tem como fim último uma espécie de «colmeia humana» a que todos os homens estarão ligados. Todos? Bem, todos, todos creio que não porque estamos a mais. Apesar de conhecer o trabalho do Clube de Roma desde há muito tempo, por motivos profissionais, confesso que os seus pressupostos fabianos e eugenistas nunca me convenceram. Talvez por ser uma otimista convicta, sempre observei a Vida com o entusiasmo e a energia vibrante que podemos imprimir ao processo de atualização pessoal. É esta liberdade para decidirmos a redefinição de objetivos, desafios e funções, em cada etapa de vida, que se revela num dos maiores desafios transformando a nossa vida num mistério. Pelo que, se ainda não teve a oportunidade de ler Buber aproveite esta deixa.

Já em jeito de conclusão, acredito que o planeta não pertence a ninguém em especial, porque pertence a todos e a cada um. Cabe, a cada Estado soberano, a sua participação em organizações com o intuito de promover a paz, anatemizar a guerra, e contribuir para novos modelos de gestão do planeta Terra. Porque, até hoje, a invenção da soberania popular parece-me ter sido a melhor fórmula para dar sentido à nossa existência. Certamente, abrindo-se a oportunidade para a correção dos desvios. Mas correção, melhoria … nunca desista do sonho que é a liberdade humana. Porque, tal como o autor dos Lusos Oceanos, pergunto: por que razão a IA acarreta tantos riscos, quando «devia ser posta ao serviço da humanidade e não contra ela?». Por acaso conhece o HALL? Se não conhece está aqui a oportunidade para o conhecer. Procure por Stanley Kubrick e verá como imaginou o filme «2001.Odisseia no Espaço, a melhor versão que a sétima arte poderia prestar tributo ao misterioso conto A Sentinela, do não menos legendário Arthur C. Clarke.

Termino, tal como Ordine, a acreditar no Manifesto da Utilidade do Inútil e numa conceção do homem como um peregrino, em constante atualização de si mesmo na relação com o outro. Mas se me começarem a perguntar se a minha peregrinação é sustentável, e, já agora, qual é a pegada que ela deixa …. Bem, aí…. Está a ver onde quero chegar?

Já agora, se sua biblioteca híbrida já tem mais alguns volumes, então partilhamos aquela felicidade especial – a leitura e a reflexão libertária que proporciona. Aliás, cada artigo pretende ser um pequeno contributo para o enriquecimento pessoal, familiar, profissional, assim como da sua biblioteca. Sim, da sua, daquela que é pessoal e intransmissível. Relembro as palavras de Marco Aurélio, aquele imperador romano sereno e desapegado – «A opinião de 10 000 homens não tem qualquer valor se nenhum deles sabe nada sobre o assunto.» Quem não conhece história está condenado a repeti-la.

Mónica Rodrigues

Especialista em Geopolítica e Geoestratégia. Licenciada em História (FCSH-UN) e com um DEA em Geopolitique (Universidade de Paris). Curso Segurança Internacional (NATO/UKiel, Alemanha). Auditora do Curso de Defesa Nacional (IDN/2002). Diretora da Revista Cidadania e Defesa (AACDN). Membro da SEDES (SEDES-Setúbal). Foi professora assistente de Geopolitica/Geoestrategia e Segurança e Defesa Nacional (ULusíada).