Os borrados de medo

Vejo-os Ć  minha volta. Todos os dias. A toda a hora. Em qualquer sĆ­tio.

Borrados de medo.

São aqueles que ajustam a mÔscara quando passam por mim na rua. São os seguranças que me perseguem no supermercado e me mandam repetidamente pÓr o nariz para dentro da mÔscara. São os que desinfectam as mãos à entrada de cada loja, e os que me mandam fazê-lo quando não o faço. São os que evitam reunir-se com quem sempre se reuniram. São os que seguem os números e as notícias sem fazerem crítica nem pensarem pela própria cabeça. E são também aqueles que fornecem os números e as notícias. São os que fazem as regras e as impõem sem permissão de escolha. São os que mandam e os que obedecem.

Borrados de medo, uns e outros.

Os borrados de medo podem ser qualquer um. Aparecem nos locais mais insuspeitos e surpreendentes. Mas tambƩm surgem onde sempre soubemos que a cobardia era omnipresente.

Os borrados de medo existem em todos os paƭses, em todas as ideologias, religiƵes e partidos. Nada nem ninguƩm estƔ livre dos borrados de medo.

Os borrados de medo podem ser pessoas previamente inteligentes, seguras, afoitas, aparentemente corajosas. E que se revelam agora borrados de medo.

E hÔ pessoas inseguras, não muito inteligentes, com medo de tudo, que são agora imunes a toda a propaganda evangelizadora dos borrados de medo. E não são borrados de medo.

Os borrados de medo podem ser profissionais de saúde que inventam mil desculpas para não   se aproximarem destes doentes, chegando a usar baixas médicas para não o fazerem. E são seguramente todos aqueles que consideram normal que isso assim seja, e aceitam enviar uns para a frente dos cuidados, e asseguram que os outros ficam na retaguarda. Não foi assim em todas as guerras?

E claro que aqueles profissionais de saúde que não se desculpam e não fogem, que se aproximam destes doentes, que lhes tocam, que os observam de perto, que lhes falam sem medo nem barreiras, que não são borrados de medo, estes são por sua vez chamados de cobardes, de não resilientes, ou mesmo de negacionistas. Tudo para que os borrados de medo não se sintam mal quando comparados com eles.

Os borrados de medo podem ser os que se fecham em casa voluntariamente durante 14 dias porque contactaram com alunos de uma escola onde algures noutra turma qualquer um outro aluno testou positivo. Ou então podem tornar-se incapazes de beber Ôgua de uma garrafa em cima de uma mesa, atrapalhados à procura de um lenço, tal é o medo de tocar nessa garrafa, fonte assustadora de infecção e de mal e de morte. E podem ser ainda aqueles que exigem testes negativos às pessoas saudÔveis e jÔ vacinadas.

São borrados de medo as autoridades de saúde que mandam para casa centenas de milhares de pessoas saudÔveis, porque contactaram ligeiramente com um caso positivo, ou até apenas porque contactaram com alguém que contactou com um caso positivo.

SĆ£o autoridades de saĆŗde, mas borrados de medo.

SĆ£o borrados de medo todos os que gritam ā€œponha a mĆ”scara!ā€ e ā€œdesinfecte as mĆ£os!ā€ e se afastam sempre ligeiramente quando alguĆ©m se aproxima para falar com eles.

Os borrados de medo não podem nunca permitir que a sua cobardia seja desmascarada. E a sua estratégia de dissimulação é essencial, até para eles próprios e para a sua auto-estima.

Ɖ absolutamente necessĆ”rio que o seu comportamento seja considerado nobre e belo e correcto, e que o dos outros seja visto como mau, irresponsĆ”vel, egoĆ­sta e inconsequente. E Ć© com violĆŖncia e raiva e ódio que se referem e atacam os que nĆ£o sĆ£o borrados de medo, como eles sĆ£o. E sobre esses fazem chover insultos, processos disciplinares na ordem dos MĆ©dicos, ou multas e repressĆ£o por parte da polĆ­cia.

Para além da repressão violenta, os borrados de medo usam também a evangelização. A evangelização dos outros é essencial. Para que se convertam em borrados de medo também. Os borrados de medo são exímios no uso de todos os meios evangelizadores. A toda a hora. Sem descanso.

Usam cartazes enormes de publicidade, mostrando pessoas gravemente doentes, dizendo que uma mĆ”scara, uma janela aberta ou dois metros de distĆ¢ncia poderiam ter evitado aquele sofrimento. Manipulam informação e dados, que fornecem todos os dias sem excepção, falando de ā€œcasosā€, de internados e de mortos, do nosso e de outros paĆ­ses, mas sem nunca explicarem a gravidade relativa das coisas, sem dizerem a quantos dos ā€œcasosā€ nada de especial acontece, ou de que forma tantas outras doenƧas matam tanto mas tanto mais do que esta. A saturação das cabeƧas com a repetição das informaƧƵes manipuladas Ć© um excelente meio evangelizador.

E hÔ-que evangelizar, fazer a re-educação das massas, e mostrar-lhes a mesma informação manipulada vezes e vezes sem conta, até que se re-eduquem.

AtƩ que se tornem borrados de medo como eles.

Os borrados de medo estão sempre borrados de medo. Se não for com os números do presente, é com os números do passado. Ou então são os números do futuro que os aterrorizam. Ou os de outros países. Ou de outras variantes. Se não é a (escassa) gravidade da doença, são as suas consequências futuras, que afinal parece que não existem. Por que os borrados de medo estão sempre borrados de medo.

Os borrados de medo explicam que aquilo que fazem não é (nunca!) para sua protecção pessoal (não!), mas sim para proteger os outros, os seus pais, os seus filhos ou uma tia velhinha de quem muito gostam.

Porque eles não são borrados de medo, (disparate!) são, isso sim, pessoas responsÔveis, preocupados com os outros.

Deve ser por isso que ajustam a mÔscara quando passo por eles desmascarado na rua. E que me interpelam e perseguem e insultam quando não a uso. Deve ser para me protegerem a mim.

E a vacinação das crianças também deve ser para as proteger a elas, e não para os proteger a eles, os borrados de medo.

Os borrados de medo começaram por nos dizer que era só até vir uma vacina. Depois que era só até estarmos todos vacinados. Depois que era a terceira dose. Os ingleses jÔ falam da quarta dose. Outros dizem que agora tem de ser até vir uma nova vacina que impeça a transmissão.

Os borrados de medo eram borrados de medo antes da vacina e continuaram a sê-lo jÔ vacinados. Eram borrados de medo antes de terem a doença e continuaram depois de recuperarem dos seus sintomas ligeiros.

Os borrados de medo serão sempre borrados de medo.

E os que não o são, não o eram antes, nem o são depois.

Porque os que não são borrados de medo aceitam simplesmente os riscos inerentes a estarmos vivos. Para os borrados de medo nenhum risco é pequeno o suficiente para que deixem de ser borrados de medo.

Ɖ muito perigoso ir contra os borrados de medo. O medo Ć© uma forƧa poderosa, que os torna inabalĆ”veis nas suas crenƧas e agressivos com quem lhes demonstra o seu ridĆ­culo borrado de medo. Quem anda sem medo, sem mĆ”scara, sem distanciamento, sem desinfecção… e sem consequĆŖncias desse comportamento, esse Ć© um indivĆ­duo mortal para os borrados de medo. Essas pessoas sĆ£o a criptonite e a nĆ©mesis dos borrados de medo. Porque desmascaram o medo verde-vómito que os cobre.

Por isso, estamos perdidos. Os borrados de medo sĆ£o implacĆ”veis. Ɖ necessĆ”rio que todos os outros cumpram as suas regras de borrados de medo, para que fique disfarƧada a sua fraqueza vergonhosa.

Os que não são borrados de medo não querem nem saber o que os borrados de medo fazem. Mas os borrados de medo precisam de controlar tudo aquilo que fazem aqueles que não o são.

O que seria do mundo, se cada um pudesse decidir fazer o que queria em relação ao vírus? E se nada de diferente atingisse os que nada fizessem e andassem sem preocupação nem medo, na sua vida normal? Os borrados de medo seriam descobertos.

NĆ£o pode ser.

Coragem não é não ter medo. Coragem é ter medo, e enfrentar esse medo, e agirmos como se não sentíssemos dentro de nós esse medo. E, quando agimos como se o medo não existisse, ele efectivamente vai diminuindo dentro de nós até desaparecer.

Cobardia não é ter medo. Cobardia é ter medo e entregarmo-nos ao medo e ficarmos paralisados e condicionados na nossa acção por causa dele. E, quando condicionamos aquilo que fazemos ao medo que sentimos, ele vai crescendo e aumentando, dominando-nos cada vez mais.

Cobardia Ć© ser-se borrado de medo.

Os borrados de medo estão à nossa volta. São quem manda em nós. Querem que todos sejamos  como eles. Eles odeiam quem não é borrado de medo, porque o nosso comportamento desmascara a sua cobardia.

Os borrados de medo são o Novo Normal.

Tiago de Abreu, mƩdico, especialista em Medicina Interna