Perigo e risco

Numa audiĆŖncia em tribunal poucos de nós se atreveria a chamar quadrilha a um qualquer aglomerado de pessoas, e no caso de uma visita da seguranƧa social Ć  nossa casa poderĆ” nĆ£o ser recomendĆ”vel tratar as crianƧas por ā€œcanalhaā€. Na nossa vida quotidiana permitimo-nos bastante mais flexibilidade nas palavras comparativamente a meios formais e, tal como na poesia, todas as possibilidades da linguagem sĆ£o utilizĆ”veis. O problema Ć© quando estes dois mundos se sobrepƵem (surrepticiamente, inconscientemente, ou de qualquer outra forma). O recente uso das palavras ā€œperigoā€ e ā€œriscoā€ sĆ£o exemplos do que estĆ” em causa. Coloquialmente estes dois termos sĆ£o facilmente substituĆ­veis um pelo outro. Por outro lado, formalmente existia uma diferenƧa concreta entre os dois. Uma diferenƧa que se tem esbatido ultimamente em simultĆ¢neo com a introdução do conceito de risco na esfera pĆŗblica como se tratasse de perigo.Ā 

Perigo refere-se à existência de algo concreto que pode causar dano. Risco refere-se à possibilidade de existência desse perigo. Alguém pode estar em casa e optar por não sair por haver um tiroteio na rua e recear ser alvejado. Alternativamente, a decisão de ficar em casa pode residir na presença de muitas pessoas na rua e da consequente possibilidade de alguma delas ser portadora de uma arma de fogo. No primeiro exemplo foi o medo de uma situação concreta que levou a um comportamento concreto, no segundo exemplo foi um medo abstrato. Mas a diferença não se esgota neste aspecto. Ao evitar sair à rua com base numa anÔlise abstrata é a interação com os outros que é recusada, porque os outros são efetivamente percebidos através deste prisma. Desta forma uma anÔlise abstrata tem consequências bastante concretas. 

A distinção entre estes dois termos existia claramente na legislação portuguesa até março de 2020. De acordo com a Lei de bases da saúde pública, publicada em 2019 (Base 34, al. 2), avaliações de risco podem informar decisões no âmbito de políticas públicas, enquanto é apenas com a existência de perigo para a saúde pública que se pode proceder a internamentos compulsivos. O mesmo era dito na Lei de Saúde Mental, tal como em direito penal.  O que estÔ aqui em causa é que apenas após uma avaliação concreta que determina que alguém constitui um perigo efectivo para a saúde pública se pode limitar os seus direitos, liberdades e garantias. 

Legalmente o risco é um conceito profundamente diferente que tem particular relevo para o direito dos seguros. Ao fazer um contrato com uma seguradora, uma pessoa acorda que em caso de se concretizar um risco abstrato a seguradora assume a responsabilidade pelas consequências desse fato. O seguro de carro é o exemplo mais claro para todos nós. Não pagamos o seguro como consequência de qualquer acidente concreto, mas apenas para fazermos face ao perigo de esse acidente vir a acontecer. Mas o seguro apenas se responsabiliza pelas consequências financeiras e nunca pelas consequências penais de um acidente.

Que o decreto-lei que suspendeu a constituição a 13 de marƧo de 2020 – 5 dias antes da declaração do Estado de emergĆŖncia – se sustente numa terminologia de risco sem fazer qualquer referĆŖncia a qualquer perigo nĆ£o surpreenderĆ” ninguĆ©m. Mas assim a indeterminação atual pela qual todos os conceitos se esfumam consolida-se e normaliza-se. Quando Portugal adotou o certificado COVID da UE foi acrescentado uma alĆ­nea que foi alĆ©m do estipulado no regulamento europeu, ao prever que os portadores de certificado COVID possam estar isentos ā€œde normas de prevenção, contenção e mitigação da doenƧa COVID-19ā€. Ɖ exatamente porque os portadores do certificado COVID sĆ£o entendidos como sendo de ā€œbaixo riscoā€ que sĆ£o autorizados a desfrutar dos seus direitos, liberdades e garantias. Os restantes cidadĆ£os, apesar de poderem nĆ£o ser um perigo aos demais, tĆŖm a sua liberdade restrita.

Esta legislação basicamente coloca em causa a presunção de inocĆŖncia de qualquer pessoa que nĆ£o tenha sido comprovadamente identificada como constituindo um perigo para a saĆŗde pĆŗblica. Em agosto deste ano foi decidido pelo Supremo Tribunal Administrativo (STA) que a inexistĆŖncia de prova de perigo concreto pela resolução do Conselho de Ministros 101-A/2021 era validada pelo ā€œespecĆ­fico fator de risco constituĆ­do pela propagação da chamada variante Deltaā€. VĆŖ-se assim que a confusĆ£o entre perigo e risco alcanƧa as suas mais amplas consequĆŖncias.Ā 

Que seja uma das instâncias judiciais mais altas do regime português a aceitar que o Governo possa exceder os limites ao seu poder com uma mera avaliação de risco informa-nos sobre a perigosidade do que estÔ em causa. Nesse mesmo acórdão o STA decidiu que, ao contrÔrio do que foi decidido pelo tribunal constitucional relativamente ao governo dos Açores, o governo de Lisboa tem poderes para legislar em matéria de responsabilidade relativa da Assembleia da República por ser possível que a assembleia delegue esses poderes no Governo. Não interessa que esses poderes não tenham sido delegados. A mera possibilidade de delegação faz com que se tenham tornado em poderes de facto desde que seja considerado que existe um risco. Devemos questionar-nos sobre quais serão os limites desta lógica. O mesmo aplica-se ao Estado de Emergência? Poderemos viver num Estado de Emergência permanente meramente porque a existência de um risco faz com que a possibilidade de decretar o Estado de Emergência faça com que ele jÔ esteja em vigor?

Jorge Varela, doutorando em Filosofia, especializando-se em Filosofia do Direito

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