Roménia: quando a Comissão Europeia, os serviços secretos e o TikTok anulam eleições

ByCristina Mestre

23 de Dezembro, 2024

Os últimos acontecimentos na Roménia, que incluíram a anulação da primeira volta das eleições presidenciais, têm chamado a atenção dos europeus, que receiam a repetição de cenÔrios similares noutros países. 

Cronologicamente, tudo começou hÔ cerca de um mês, em 24 de Novembro, quando ocorreu a primeira etapa das eleições presidenciais. Na Roménia, que integra a União Europeia desde 2007, o presidente tem poderes importantes, determina a política externa e representa o país no Conselho Europeu. 

Calin Georgescu, um candidato independente e anti-establishment, venceu a primeira volta das eleições, garantindo mais de 2 milhões de votos (22,94%), contra 19,2% da centrista pró-UE Elena Lasconi.

Este resultado foi totalmente inesperado, pois o candidato vencedor tinha apenas 1%-5% das intenƧƵes de voto. A imprensa internacional escreveu sobre a ā€œascensĆ£o chocanteā€ de um candidato praticamente desconhecido e sobre a ā€œanomalia polĆ­ticaā€ que representaria. Georgescu praticamente nĆ£o fez aƧƵes de rua nem deu entrevistas Ć  imprensa durante a campanha, recorrendo Ć s redes sociais, especialmente ao TikTok, para divulgar as suas ideias. Teria sido o enorme alcance e o potencial viral do TikTok que o ajudaria a vencer. Mas nĆ£o só.Ā 

Quem Ć© afinal Calin Georgescu?

Georgescu, de 62 anos, fez carreira em instituições políticas e administrativas romenas, mas não era um político com grande apoio entre a população. 

As actuais propostas políticas de Georgescu incluem a defesa do soberanismo e duras críticas à Aliança Atlântica, especialmente ao sistema de defesa antimíssil instalado em território romeno. Georgescu defende a normalização das relações com a Rússia e opõe-se à instalação de mais uma base da NATO na Roménia. Pior ainda: é a favor da suspensão da ajuda militar à Ucrânia. 

Isto causou grande preocupação em Washington e Bruxelas, especialmente devido à posição estratégica da Roménia junto à Ucrânia e à MoldÔvia. Além disso, Georgescu apela a uma maior independência da Roménia em relação à economia mundial e sublinha a proteção dos interesses nacionais no sector agroindustrial. Ele protestou contra o Green Deal da União Europeia. JÔ os seus críticos dizem que Georgescu é um político de extrema-direita pró-Rússia. 

Ele defende os agricultores romenos, que nem sempre são a favor do mercado único na UE, advogando visões tradicionais sobre papéis de género, aborto e família. 

O TikTok permitiu-lhe colocar o ĆŖnfase na juventude e difundir com ĆŖxito a sua mensagem anti-sistema.Ā 

Após o anĆŗncio dos resultados da primeira volta das eleiƧƵes presidenciais, os Estados Unidos ameaƧaram Bucareste com ā€œconsequĆŖncias negativasā€. O Departamento de Estado norte-americano afirmou num comunicado que o abandono da RomĆ©nia do seu rumo pró-ocidental poderia levar a um enfraquecimento dos laƧos de seguranƧa com Washington e a uma redução do investimento norte-americano.Ā 

Soam os alarmes na Comissão Europeia

Em 28 de Novembro, a Comissão Europeia anunciou que iria realizar uma reunião com as autoridades romenas e o TikTok, jÔ que os reguladores em Bucareste ameaçaram suspender a rede social de propriedade chinesa pelo seu papel na eleição presidencial romena. 

Bucareste pediu à Comissão Europeia que iniciasse uma investigação formal sobre o TikTok sob as leis europeias. Um importante legislador da UE exigiu que o diretor executivo do TikTok comparecesse ao Parlamento Europeu para responder a perguntas.

A Autoridade Nacional de GestĆ£o e Regulamentação das ComunicaƧƵes da RomĆ©nia (ANCOM), informou nos finais de Novembro que lanƧaria o ā€œprocesso oficialā€ para bloquear o TikTok na RomĆ©nia.

Antes da segunda volta das presidenciais, marcada para 8 de Dezembro, a ComissĆ£o Europeia, autoridades romenas e altos funcionĆ”rios do TikTok realizaram uma reuniĆ£o. O porta-voz do TikTok, Paolo Ganino, disse num comunicado que ā€œos relatórios altamente especulativos sobre as eleiƧƵes romenas sĆ£o imprecisos e enganososā€.

Relatório dos serviços secretos 

Em 4 de Dezembro, o presidente romeno Klaus Iohannis desclassificou vĆ”rios relatórios de inteligĆŖncia revelando que, no dia da primeira volta das eleiƧƵes presidenciais, a RomĆŖnia teria sido alvo de milhares de ciberataques atribuĆ­dos a um ā€œator estatalā€ (supostamente, a RĆŗssia).Ā 

Os relatórios afirmaram que Georgescu orquestrou e ampliou a sua campanha no TikTok nas duas semanas que antecederam as eleições.  

Em 6 de Dezembro, 48 horas antes da segunda volta, o Tribunal Constitucional da Roménia anulou as eleições presidenciais. Foi alegado que a campanha de Georgescu teria recebido tratamento preferencial do TikTok, jÔ que a plataforma não indicou o conteúdo promocional como parte da campanha eleitoral. 

A decisĆ£o do tribunal gerou grande controvĆ©rsia. Elena Lasconi afirmou que o Estado romeno ā€œespezinhou a democraciaā€. ā€œGostemos ou nĆ£o, do ponto de vista legal e legĆ­timo, nove milhƵes de cidadĆ£os romenos, tanto no paĆ­s quanto na diĆ”spora, expressaram a sua preferĆŖncia por um determinado candidato. NĆ£o podemos ignorar a vontade delesā€, disse ela.Ā 

Georgescu divulgou um vĆ­deo acusando o tribunal de ā€œgolpe de Estadoā€.

Elon Musk tambĆ©m se pronunciou: ā€œComo Ć© que um juiz pode cancelar uma eleição e nĆ£o ser considerado um ditador?ā€, comentou ele no X.

Não obstante a polémica, em 1 de Dezembro, foram realizadas as eleições legislativas na Roménia. Venceram os sociais-democratas pró-europeus do PSD, com 22,3%, ainda que com menor resultado que em 2020. Pelo contrÔrio, vÔrios dos chamados partidos de extrema-direita viram os seus resultados crescer. Assim, a Aliança para a União dos Romenos (AUR) obteve 18,3 % (o dobro do resultado obtido em 2020). 

Reviravolta

Entretanto, surgiram novas informações que podem pÓr em causa as conclusões dos serviços secretos sobre a suposta influência da Rússia nas eleições presidenciais romenas. 

  A agência romena de administração fiscal ANAF descobriu que a campanha no TikTok do vencedor da primeira volta, Calin Georgescu, não foi paga pelos russos, como sugeriram os serviços secretos romenos, mas pelo partido PNL, de centro-direita pró-europeu, que integrou a última coligação governamental do país. 

De acordo com a edição romena Snoop (ANAF descobriu que PNL pagou por uma campanha que promoveu massivamente Calin Georgescu no TikTok – Snoop), 130 influenciadores pagos pela empresa Kensington Communication, contratada pelo PNL, lanƧaram em novembro de 2024, antes das eleiƧƵes presidenciais, uma campanha intitulada ā€œBalance and Verticalityā€, que acabou por beneficiar Calin Georgescu.

No final, a campanha obteve 2,4 milhƵes de visualizaƧƵes.

O portal solidnews.ro explica que o PNL tentou que o seu candidato Nicolae Ciuca chegasse Ć  segunda volta das eleiƧƵes, mas temia a crescente popularidade de George Simion, da AUR. Para reduzir a sua popularidade, promoveu Georgescu. Só que o plano falhou – Georgescu ganhou e Ciuca nĆ£o passou Ć  segunda volta.

Por seu lado, a Kensington Communication escreveu: ā€œSe a campanha foi clonada ou sequestrada a favor de um ou outro candidato, pedimos aos órgĆ£os competentes que verifiquem e tomem as medidas legais necessĆ”riasā€. A empresa tambĆ©m disse que o roteiro que eles enviaram aos influenciadores para a campanha foi alterado.

E agora?

A anulação das eleiƧƵes presidenciais romenas tem gerado forte discussĆ£o entre os movimentos eurocĆ©ticos. Afinal, a eleição foi cancelada por causa de uma campanha nas redes sociais, coisa a que todos os partidos recorrem, basta lembrar o escĆ¢ndalo de dados do Facebook–Cambridge Analytica.Entretanto, o mandato do presidente Klaus Iohannis terminou em 21 de Dezembro, sem que haja um sucessor.Ā 

Todos estes acontecimentos na Roménia mostram-nos até que ponto os sistemas democrÔticos são atualmente vulnerÔveis e passíveis de manipulação, incluindo por empresas privadas adequadamente financiadas, sejam elas nacionais ou estrangeiras. 

Outra questão que se coloca é se a anulação de uma eleição por alegada interferência externa não serÔ um precedente para anular outras eleições quando o resultado desagradar a alguém? 

A única coisa que esta crise na Roménia NÃO nos deve levar a pensar é que o sistema democrÔtico estÔ tão desvirtuado que podemos abdicar dele e procurar outras soluções, incluindo as autoritÔrias. 

Essa, julgamos, é uma solução fÔcil, mas enganadora. 

Por mais manipulaƧƵes que haja, por mais que a democracia esteja capturada por forƧas poderosas, abdicar dela Ʃ o pior que podemos fazer.

Cristina Mestre