Os Ćŗltimos acontecimentos na RomĆ©nia, que incluĆram a anulação da primeira volta das eleiƧƵes presidenciais, tĆŖm chamado a atenção dos europeus, que receiam a repetição de cenĆ”rios similares noutros paĆses.Ā
Cronologicamente, tudo comeƧou hĆ” cerca de um mĆŖs, em 24 de Novembro, quando ocorreu a primeira etapa das eleiƧƵes presidenciais. Na RomĆ©nia, que integra a UniĆ£o Europeia desde 2007, o presidente tem poderes importantes, determina a polĆtica externa e representa o paĆs no Conselho Europeu.Ā
Calin Georgescu, um candidato independente e anti-establishment, venceu a primeira volta das eleições, garantindo mais de 2 milhões de votos (22,94%), contra 19,2% da centrista pró-UE Elena Lasconi.
Este resultado foi totalmente inesperado, pois o candidato vencedor tinha apenas 1%-5% das intenƧƵes de voto. A imprensa internacional escreveu sobre a āascensĆ£o chocanteā de um candidato praticamente desconhecido e sobre a āanomalia polĆticaā que representaria. Georgescu praticamente nĆ£o fez aƧƵes de rua nem deu entrevistas Ć imprensa durante a campanha, recorrendo Ć s redes sociais, especialmente ao TikTok, para divulgar as suas ideias. Teria sido o enorme alcance e o potencial viral do TikTok que o ajudaria a vencer. Mas nĆ£o só.Ā
Quem Ć© afinal Calin Georgescu?
Georgescu, de 62 anos, fez carreira em instituiƧƵes polĆticas e administrativas romenas, mas nĆ£o era um polĆtico com grande apoio entre a população.Ā
As actuais propostas polĆticas de Georgescu incluem a defesa do soberanismo e duras crĆticas Ć AlianƧa AtlĆ¢ntica, especialmente ao sistema de defesa antimĆssil instalado em território romeno. Georgescu defende a normalização das relaƧƵes com a RĆŗssia e opƵe-se Ć instalação de mais uma base da NATO na RomĆ©nia. Pior ainda: Ć© a favor da suspensĆ£o da ajuda militar Ć UcrĆ¢nia.Ā
Isto causou grande preocupação em Washington e Bruxelas, especialmente devido Ć posição estratĆ©gica da RomĆ©nia junto Ć UcrĆ¢nia e Ć MoldĆ”via. AlĆ©m disso, Georgescu apela a uma maior independĆŖncia da RomĆ©nia em relação Ć economia mundial e sublinha a proteção dos interesses nacionais no sector agroindustrial. Ele protestou contra o Green Deal da UniĆ£o Europeia. JĆ” os seus crĆticos dizem que Georgescu Ć© um polĆtico de extrema-direita pró-RĆŗssia.Ā
Ele defende os agricultores romenos, que nem sempre sĆ£o a favor do mercado Ćŗnico na UE, advogando visƵes tradicionais sobre papĆ©is de gĆ©nero, aborto e famĆlia.Ā
O TikTok permitiu-lhe colocar o ĆŖnfase na juventude e difundir com ĆŖxito a sua mensagem anti-sistema.Ā
Após o anĆŗncio dos resultados da primeira volta das eleiƧƵes presidenciais, os Estados Unidos ameaƧaram Bucareste com āconsequĆŖncias negativasā. O Departamento de Estado norte-americano afirmou num comunicado que o abandono da RomĆ©nia do seu rumo pró-ocidental poderia levar a um enfraquecimento dos laƧos de seguranƧa com Washington e a uma redução do investimento norte-americano.Ā
Soam os alarmes na Comissão Europeia
Em 28 de Novembro, a ComissĆ£o Europeia anunciou que iria realizar uma reuniĆ£o com as autoridades romenas e o TikTok, jĆ” que os reguladores em Bucareste ameaƧaram suspender a rede social de propriedade chinesa pelo seu papel na eleição presidencial romena.Ā
Bucareste pediu à Comissão Europeia que iniciasse uma investigação formal sobre o TikTok sob as leis europeias. Um importante legislador da UE exigiu que o diretor executivo do TikTok comparecesse ao Parlamento Europeu para responder a perguntas.
A Autoridade Nacional de GestĆ£o e Regulamentação das ComunicaƧƵes da RomĆ©nia (ANCOM), informou nos finais de Novembro que lanƧaria o āprocesso oficialā para bloquear o TikTok na RomĆ©nia.
Antes da segunda volta das presidenciais, marcada para 8 de Dezembro, a ComissĆ£o Europeia, autoridades romenas e altos funcionĆ”rios do TikTok realizaram uma reuniĆ£o. O porta-voz do TikTok, Paolo Ganino, disse num comunicado que āos relatórios altamente especulativos sobre as eleiƧƵes romenas sĆ£o imprecisos e enganososā.
Relatório dos serviƧos secretosĀ
Em 4 de Dezembro, o presidente romeno Klaus Iohannis desclassificou vĆ”rios relatórios de inteligĆŖncia revelando que, no dia da primeira volta das eleiƧƵes presidenciais, a RomĆŖnia teria sido alvo de milhares de ciberataques atribuĆdos a um āator estatalā (supostamente, a RĆŗssia).Ā
Os relatórios afirmaram que Georgescu orquestrou e ampliou a sua campanha no TikTok nas duas semanas que antecederam as eleiƧƵes.Ā Ā
Em 6 de Dezembro, 48 horas antes da segunda volta, o Tribunal Constitucional da RomĆ©nia anulou as eleiƧƵes presidenciais. Foi alegado que a campanha de Georgescu teria recebido tratamento preferencial do TikTok, jĆ” que a plataforma nĆ£o indicou o conteĆŗdo promocional como parte da campanha eleitoral.Ā
A decisĆ£o do tribunal gerou grande controvĆ©rsia. Elena Lasconi afirmou que o Estado romeno āespezinhou a democraciaā. āGostemos ou nĆ£o, do ponto de vista legal e legĆtimo, nove milhƵes de cidadĆ£os romenos, tanto no paĆs quanto na diĆ”spora, expressaram a sua preferĆŖncia por um determinado candidato. NĆ£o podemos ignorar a vontade delesā, disse ela.Ā
Georgescu divulgou um vĆdeo acusando o tribunal de āgolpe de Estadoā.
Elon Musk tambĆ©m se pronunciou: āComo Ć© que um juiz pode cancelar uma eleição e nĆ£o ser considerado um ditador?ā, comentou ele no X.
NĆ£o obstante a polĆ©mica, em 1 de Dezembro, foram realizadas as eleiƧƵes legislativas na RomĆ©nia. Venceram os sociais-democratas pró-europeus do PSD, com 22,3%, ainda que com menor resultado que em 2020. Pelo contrĆ”rio, vĆ”rios dos chamados partidos de extrema-direita viram os seus resultados crescer. Assim, a AlianƧa para a UniĆ£o dos Romenos (AUR) obteve 18,3 % (o dobro do resultado obtido em 2020).Ā
Reviravolta
Entretanto, surgiram novas informaƧƵes que podem pĆ“r em causa as conclusƵes dos serviƧos secretos sobre a suposta influĆŖncia da RĆŗssia nas eleiƧƵes presidenciais romenas.Ā
Ā A agĆŖncia romena de administração fiscal ANAF descobriu que a campanha no TikTok do vencedor da primeira volta, Calin Georgescu, nĆ£o foi paga pelos russos, como sugeriram os serviƧos secretos romenos, mas pelo partido PNL, de centro-direita pró-europeu, que integrou a Ćŗltima coligação governamental do paĆs.Ā
De acordo com a edição romena Snoop (ANAF descobriu que PNL pagou por uma campanha que promoveu massivamente Calin Georgescu no TikTok ā Snoop), 130 influenciadores pagos pela empresa Kensington Communication, contratada pelo PNL, lanƧaram em novembro de 2024, antes das eleiƧƵes presidenciais, uma campanha intitulada āBalance and Verticalityā, que acabou por beneficiar Calin Georgescu.
No final, a campanha obteve 2,4 milhƵes de visualizaƧƵes.
O portal solidnews.ro explica que o PNL tentou que o seu candidato Nicolae Ciuca chegasse Ć segunda volta das eleiƧƵes, mas temia a crescente popularidade de George Simion, da AUR. Para reduzir a sua popularidade, promoveu Georgescu. Só que o plano falhou ā Georgescu ganhou e Ciuca nĆ£o passou Ć segunda volta.
Por seu lado, a Kensington Communication escreveu: āSe a campanha foi clonada ou sequestrada a favor de um ou outro candidato, pedimos aos órgĆ£os competentes que verifiquem e tomem as medidas legais necessĆ”riasā. A empresa tambĆ©m disse que o roteiro que eles enviaram aos influenciadores para a campanha foi alterado.
E agora?
A anulação das eleiƧƵes presidenciais romenas tem gerado forte discussĆ£o entre os movimentos eurocĆ©ticos. Afinal, a eleição foi cancelada por causa de uma campanha nas redes sociais, coisa a que todos os partidos recorrem, basta lembrar o escĆ¢ndalo de dados do FacebookāCambridge Analytica.Entretanto, o mandato do presidente Klaus Iohannis terminou em 21 de Dezembro, sem que haja um sucessor.Ā
Todos estes acontecimentos na RomĆ©nia mostram-nos atĆ© que ponto os sistemas democrĆ”ticos sĆ£o atualmente vulnerĆ”veis e passĆveis de manipulação, incluindo por empresas privadas adequadamente financiadas, sejam elas nacionais ou estrangeiras.Ā
Outra questĆ£o que se coloca Ć© se a anulação de uma eleição por alegada interferĆŖncia externa nĆ£o serĆ” um precedente para anular outras eleiƧƵes quando o resultado desagradar a alguĆ©m?Ā
A Ćŗnica coisa que esta crise na RomĆ©nia NĆO nos deve levar a pensar Ć© que o sistema democrĆ”tico estĆ” tĆ£o desvirtuado que podemos abdicar dele e procurar outras soluƧƵes, incluindo as autoritĆ”rias.Ā
Essa, julgamos, Ć© uma solução fĆ”cil, mas enganadora.Ā
Por mais manipulaƧƵes que haja, por mais que a democracia esteja capturada por forƧas poderosas, abdicar dela Ʃ o pior que podemos fazer.
Cristina Mestre