Um relatório divulgado esta segunda-feira confirma que, em grande medida, as autoridades britânicas fecharam os olhos às violações de milhares de raparigas, perpetradas durante anos a fio por gangs de origem predominantemente asiática, para não exacerbarem racismo e tensões étnicas. O documento arrasa a acção – ou a inacção – das autoridades, e recomenda várias medidas para ‘corrigir’ os erros cometidos e levar, finalmente, os autores dos crimes à justiça. O primeiro-ministro Keir Starmer, que anteriormente tinha negado as críticas pela actuação ‘frouxa’ das autoridades e a necessidade de um inquérito, confirmou no fim-de-semana a abertura de uma investigação de larga escala com base nas recomendações do relatório.
Um relatório divulgado esta segunda-feira, 16, sobre os denominados “grooming gangs” corrobora as críticas de inacção feitas às autoridades britânicas. A Polícia não agiu com eficácia contra aqueles grupos organizados que violaram dezenas de milhares de crianças e adolescentes por recearem acusações de racismo, já que havia uma clara sobrerrepresentação de homens de origem asiática entre os violadores.
No início do ano, o escândalo criou uma onda de choque e indignação depois de Elon Musk ter reacendido o tema, criticando os Governos do Reino Unido e o actual primeiro-ministro por não terem feito a devida justiça às vítimas destes crimes, que começaram no final dos anos 1990 mas cujas primeiras condenações só tiveram lugar em 2011. Entre 2008 e 2013, era Keir Starmer quem estava à frente do Ministério Público britânico.
Em Janeiro passado, Starmer rebateu as acusações e qualificou-as como “mentiras e desinformação”, afastando a ideia de um inquérito nacional às violações em massa, mas este relatório vem mesmo confirmar as suspeições de impunidade de que os agressores beneficiaram, com as autoridades a desvalorizarem denúncias para não exacerbarem tensões étnicas.
E a autora do relatório, Louise Casey, acusa os organismos públicos de terem usado dados pouco fiáveis para refutar as alegações sobre os ‘gangs’ asiáticos como sendo “sensacionalistas, enviesadas ou incorrectas”.
Com efeito, afirmando que a “etnia dos perpetradores tem sido uma questão-chave para esta auditoria”, o relatório diz que esta questão tem sido, contudo, “evitada” e que ainda não é registada em dois terços dos casos. Uma situação que irá agora mudar, uma vez que o documento recomenda que este registo seja feito daqui para a frente.
“Há um desconforto palpável em qualquer discussão sobre etnia. Quando a etnia é mencionada, ela é mencionada em eufemismos como ‘a comunidade local’, ou está enterrada no relatório e apenas vagamente referenciada em qualquer índice ou resumo executivo”.
Não obstante esta falta de dados no âmbito nacional, o documento refere que os dados da polícia local em três áreas examinadas pelo Tribunal “mostram um número desproporcional de homens de origens étnicas asiáticas entre os suspeitos de exploração sexual infantil” e também nos perpetradores identificados em análises locais. Uma sobrepresentação que “pelo menos, justifica um exame mais aprofundado”.
O relatório aponta mesmo que a relutância em abordar as etnias e origens dos criminosos pode “criar barreiras adicionais na detecção, denúncia e acusação de crimes” e salienta que “não é racista” querer examinar a etnia dos criminosos. Acrescenta, aliás, que essa análise contribui para uma prevenção e combate mais eficazes ao crime, ao melhorar a compreensão do “contexto, natureza e perfil dos delitos, dos delinquentes e das vítimas”.
Ministra reconhece todas as falhas apontadas
O relatório revelou “demasiada confiança em dados erróneos, demasiada negação, pouca justiça, muitos criminosos a safarem-se, demasiadas vítimas a serem abandonadas”, reconheceu a Ministra do Interior Britânica, Yvette Cooper.
Cooper assumiu que houve uma “falha contínua na protecção das adolescentes contra a violação, a exploração e a violência grave, e contra cicatrizes que duram para toda a vida” e que os criminosos ficaram à solta “porque a lei os protegeu em vez de às vítimas que eles tinham explorado”.
Assinalando uma mudança de política assente nas recomendações feitas por Louise Casey, a ministra garantiu agora que o relatório “marcará o maior programa de trabalho alguma vez encetado para acabar com os gangs de aliciadores”.
“Aqueles perpetradores vis que se habituaram a que as autoridades olhem para o outro lado não deverão ter onde se esconder”, afirmou, acrescentando que “os autores destes crimes hediondos deviam estar atrás das grades e pagar o preço pelo que fizeram”.
A ministra anunciou também que as leis sobre as violações passarão a ser mais ‘apertadas’, admitindo que, entre os alvos destes grupos, contam-se crianças de 10 anos.
Starmer confirma abertura de investigação nacional
Com base no relatório, Starmer confirmou aos jornalistas a abertura de um inquérito nacional quando se dirigia à Cimeira do G7 no Canadá, no fim-de-semana, dizendo que leu “cada palavra” e que iria “implementar as suas recomendações”.
Recorde-se que, ainda há poucos meses, o chefe do Governo britânico criticara os partidos da oposição que apelavam a uma investigação aprofundada por estarem a “amplificar” as exigências da extrema-direita. Agora, porém, o primeiro-ministro britânico considera que “é a coisa certa a fazer”.
As descrições feitas pelas vítimas – muitas viviam em orfanatos e casas de acolhimento –, que terão sido aliciadas e abusadas sexualmente repetidas vezes e, em alguns casos, por dezenas ou centenas de homens, incluem relatos de escravidão sexual, prostituição forçada e sadismo.
Apesar de algumas dezenas de pessoas terem sido detidas, havia amplos indícios de um clima de impunidade, com muitas denúncias a serem desvalorizadas e as autoridades a protegerem os agressores para evitarem acusações de racismo. Até agora, apenas foram realizados cinco inquéritos locais no país.
Fontes
Casey report: Police ‘avoided grooming gang investigations over racism fears’
Keir Starmer to launch national inquiry into grooming gangs | Politics | The Guardian
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