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A 3 de Março deste ano a OMS revelava as características deste novo vírus detetado na China.  Teria uma taxa de letalidade de 3,4% que resultava de praticamente todos desenvolverem a doença (99%). Era um vírus extremamente lento e por isso possível de conter.

Pouco tempo depois começámos a perceber que o vírus tinha uma letalidade incomparavelmente mais baixa, a grande maioria das pessoas são assintomáticas ou com sintomas ligeiros e a taxa de contágio é relativamente elevada.

Tal como em 2009, na popularmente designada gripe A, responsáveis máximos da OMS divulgaram precipitadamente dados que se revelaram totalmente errados.

Tratando-se de um desafio importante, era incomparavelmente menos dramático do que inicialmente se pensava. Mas porque é que essa perceção se manteve durante tanto tempo? Porque é que esses dados não foram integrados e adaptados nas políticas de resposta à pandemia e se prosseguiu numa estratégia extrema, optando-se por várias medidas sem claras evidências científicas? Trocou-se evidência científica robusta e a experiência acumulada de décadas por evidência fraca e medidas draconianas. Aceitaram-se efeitos seguramente devastadores em troca de benefícios no mínimo duvidosos. 

Uma das causas evidentes foi a abordagem da comunicação social.

 

A influência da comunicação social

Os canais de comunicação digitais revolucionaram a velocidade de transmissão e de disseminação de informação. Muita informação como imagens falsas de caixões ou mensagens de whatsapp encenadas circularam a uma velocidade estonteante. Algumas corrigidas quando já ninguém as via e que por isso se mantiveram como verdadeiras até aos dias de hoje.

Os meios tradicionais que vivem asfixiantes dificuldades financeiras, perderam muitos dos mais credíveis profissionais, nomeadamente os que tinham alguma formação científica. Isso agravou a dependência do poder político e criou constrangimentos adicionais. Por isso valorizaram (ainda mais) a rapidez em vez da objetividade.

Além disso, especialmente as televisões generalistas, optaram por desenvolver a sua própria narrativa sobre a pandemia. Passando a ser os narradores de uma história de horror e, até mesmo, os seus protagonistas.

Os vilões são, além do vírus, todos aqueles que de alguma forma colocam em causa o seu enredo apocalíptico ou questionam as melhores estratégias para combater a pandemia. Tornaram-se guardiões de uma verdade absoluta e incontestável. Verdade que nem os melhores cientistas se arrogam possuir.

Entre os escolhidos para tratar o tema são preferidos os que têm uma visão mais pessimista. Normalmente, ligados à área da saúde mas, na maioria, sem qualquer experiência ou formação em epidemiologia. Também notório é o destaque dado a pessoas sem qualquer ligação à área, desde políticos a matemáticos. A previsão que um destes últimos fez em direto na RTP de que 12 milhões de portugueses ficariam infetados em poucos meses ilustra bem o grau de alarmismo a que fomos expostos.

Qualquer outro evento dramático do passado começava a parecer uma brincadeira comparado com o cenário que nos era traçado. Criara-se um clima de terror generalizado, uma perceção de risco largamente exagerada.

Decisões políticas

Em Itália, que tinha ainda dados muito imprecisos sobre a doença (que se provaram em grande medida errados) e com a população em pânico, resolveu aplicar o confinamento obrigatório de toda a população. Fora a estratégia chinesa seguida em Wahan que a OMS elogiou em geral. Apesar de nunca a ter advogado especificamente (nem constasse do seu manual de intervenções em pandemias) e até, dentro do seu discurso errático, parecer por vezes reprová-la. Replicou-se assim, a nível nacional e numa democracia, uma medida local tomada por um país não democrático.

Mas talvez o país mais decisivo no tipo de reações à pandemia tenha sido o Reino Unido. Ao reverter a decisão de seguir as indicações da sua equipa científica, uma das melhores do mundo, deu lugar a uma onda de confinamentos generalizados. Muitos contrariando igualmente os seus conselhos científicos ou grupos de especialistas (como p.ex. os nórdicos em geral e os portugueses).

Os riscos políticos de ir contra a onda tornaram-se insustentáveis. Quem não a seguisse podia facilmente destruir governos, carreiras políticas ou equilíbrios de poder. Navegar nela, apesar de igualmente arriscado, traria imediatamente popularidade e a proteção de não estarem sozinhos. Veja-se o caso da Suécia e as tentativas de descredibilizar a sua estratégia. Não será por acaso que ela não foi delineada por políticos, mas pela Agência de Saúde Pública do país.

Gráfico: Nos cornos da Covid;
Fonte: SICO – VIgilância da Mortalidade (DGS)/ SCB- Population Statistics– Preliminary statistics on deaths (published 2020-09-14) 

 

Em Portugal o nosso primeiro-ministro não diabolizou a estratégia sueca. Escudou-se apenas na questão cultural para defender que optava pela solução que não envolvia contrariar o sentimento geral da população. Afirmou: “Essa estratégia não seria socialmente compreendida”… “Não podemos travar uma batalha que tem de envolver todos se as pessoas não estiverem todas envolvidas”… “Não podemos adotar uma estratégia que pode ser muito inteligente, pode ser muito racional mas é de tal forma contracorrente que não consegue mobilizar os outros”.

E em política ir contra a corrente é muito difícil e arriscado. É sempre melhor navegar a seu favor. Implementaram-se assim medidas não baseadas nas diferentes particularidades de cada um (capacidade dos serviços de saúde, números da epidemia, características da população, etc) mas mimetizando as medidas dos outros países de modo a minimizar os riscos políticos e assegurar inequivocamente a imagem do “governo protetor”.

Tal como Portugal, acredito que a maioria apanhou essa onda a contragosto. Outros fomentaram ativamente o seu crescimento colocando os ganhos políticos acima do interesse geral. Muitos ainda, utilizaram-na para impor agendas totalitárias e antidemocráticas.

A Covid- 19 tornou-se o centro de todas as atenções. Consequentemente, o sucesso governativo passou a depender principalmente dos resultados no combate à pandemia e a criação de uma história de sucesso a principal e, em alguns casos, a única preocupação.

Nessa obsessão menosprezaram-se as outras doenças, a educação, a economia, os direitos cívicos e até constitucionais.  

 

E nós, como reagimos?

Como pessoas, incapazes de sermos o que não somos. Incapazes de nos libertarmos dos nossos instintos mais profundos. Incapazes de percebermos que são eles que ainda guiam em grande medida. Por um lado, com empatia e racionalidade empreendemos nobres ações, individuais e coletivas, de solidariedade e de resolução de problemas reais que esta pandemia provocou. 

Por outro revelámos todas as nossas fragilidades. Perante a pressão constante de notícias, números e reportagens enviesadas percecionámos a epidemia com uma distorção gigantesca. O clima de medo desproporcionado tornou-nos incapazes de analisar trade-offs, contextualizar dados, relativizar riscos. A nossa tendência para explicar realidades complexas por postulados simples expõe-nos aos encantos do pensamento mágico e à ideologia dogmática. 

Todas as nossas lacunas educativas ficaram expostas. A incompreensão de como funciona a ciência (ou deve funcionar) leva à confusão entre evidência sólida, consolidada e escrutinada com evidência especulativa, frágil e não revista por pares. Também a confusão entre correlação e causalidade fez acreditar em relações de causa-efeito entre variáveis que, quando analisadas na generalidade, nem sequer têm correlações significativas. É notória a incapacidade de entender dados e estatísticas, a ausência de conhecimentos básicos de saúde e, talvez mais importante, a falta de sentido crítico em geral.

Fonte: Research Gate. Hierarchy-of-evidence (Pirâmide da Evidência Científica)

Instalou-se assim a ideia de consensos científicos, artificialmente construídos à custa de falta de diversidade de visões, da credibilização de pseudociência ou ciência de baixa qualidade.

A narrativa do vírus “novo” capaz de pôr em causa o nosso modo de vida e até sobrevivência, justificou atirar pela janela décadas de conhecimento e experiência acumulados e encetar um conjunto de medidas inéditas ou obsoletas. Tudo pela excecionalidade deste vírus.

As evidências revelaram que as premissas estavam globalmente erradas. O vírus não era assim tão novo, nem tão diferente, nem tão perigoso. Já cá andava há bastante tempo, muitos de nós possui alguma forma de imunidade e a sua letalidade é incomparavelmente menor que o inicialmente estimado. 

Mas apesar das premissas terem mudado substancialmente a narrativa geral não, apenas se readaptou o guião. Quando os números baixam, em vez de se aplanar a curva quer-se extinguir o vírus. Quando os mortos baixam salientam-se as sequelas. Quando os doentes graves são poucos salientam-se novos “casos”, normalmente de pessoas saudáveis ou com doença muito leve. Quando toda a evidência aponta para baixíssimos riscos entre as crianças especulam-se associações a doenças raras. Quando já é difícil justificar algo com os dados atuais lançam-se as mais terríveis previsões de “segundas vagas”. Mesmo daqueles que falharam estrondosamente na previsão da primeira.

E depois há sempre um caso dramático, um doente grave, alguém com possíveis sequelas.  Uma câmara que entra num hospital para mostrar o sofrimento humano em direto. Não interessa que isso infelizmente aconteça todos os dias, com muitas outras doenças e com centenas de pessoas.

Não interessa que a desproporcionalidade de medidas e de alarme social leve a que provavelmente muitas estejam (já) a passar por essas situações de modo totalmente evitável. Quer por falta de assistência adequada quer por medo de recorrer aos serviços. Não interessa que um número muito superior irá passar por situações igualmente dramáticas devido à quebra acentuada nas consultas, exames ou rastreios. Não interessa que a mortalidade em excesso esteja em valores históricos e que a Covid-19 seja apenas uma pequena parte. Não. Para esses não há câmaras, não há reportagens, não há relatos com vozes trêmulas, não há lágrimas. Não fazem parte deste filme. Há que seguir o guião até ao fim.

Gráfico: Nos cornos da Covid
Fonte: SICO – Vigilância da Mortalidade (DGS)

O facto de várias entidades criarem as suas narrativas de acordo com as racionalidades e agendas próprias, é algo normal, que sempre existiu e possivelmente sempre existirá. O que nos deve preocupar é a falta de escrutínio público, a desvalorização da diversidade de pensamento, o conformismo auto-censório. Ou, até mesmo, a obediência acrítica às autoridades, mesmo quando estas violam princípios científicos, éticos ou, até, constitucionais. Para a maioria, isso pode não parecer perigoso mas foram coisas destas que conduziram aos períodos mais sombrios da humanidade.

Contra isso devemos todos lutar, não só no contexto desta pandemia.

Conheça melhor outras medidas adotadas

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