Sessenta e oito por cento do excesso de mortalidade (EM) por causa natural em Portugal está associada a óbitos não Covid-19. De acordo com uma análise feita pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Universidade Nova de Lisboa, entre 16 de março de 30 de setembro registou-se um excesso de 6 072 óbitos por causa natural – 4 101 (67,5%) não foram causados pela Covid.
Num estudo publicado em julho de 2020, relativo ao desconfinamento, a ENSP indicava que a subnotificação dos óbitos por Covid-19 poderia explicar o excesso de mortalidade e a mortalidade colateral.
“Admitimos que alguns óbitos ocorridos em casa ou em instituições de cuidados continuados pudessem não ter tido confirmação laboratorial de Covid-19.”
No entanto, nesta análise mais recente, a Escola Nacional de Saúde Pública diz que esta explicação já “não é credível porque a política de testagem é extremamente abrangente e inclui até testes em cadáveres.”
Diminuição da procura de cuidados de saúde na origem do aumento de mortes?
A ENSP estabeleceu uma ligação entre o número de ocorrências pré-hospitalares por prioridade e o valor diário de mortes em cada ano.
No período em análise, os portugueses procuraram menos cuidados pré-hospitalares (-8%), e houve modificação significativa no tipo de procura, ou uma modificação na política de classificação dessas ocorrências, em relação ao que seria de esperar com base nas ocorrências dos três últimos anos. Os casos classificados como de alta prioridade (1 e 3) caíram entre 11 e 12%.
“Isto sugere que doentes com sintomas graves, que justificariam acionar meios de assistência pré-hospitalar de suporte imediato ou avançado de vida – ligar ao 112 -, terão tido relutância em o fazer, com medo de se infetarem com Covid-19.”
Durante este período os casos classificados como baixa prioridade (Prioridade 5), e por isso referenciados para a Saúde 24 sem ativação de meios pré-hospitalares, aumentaram 41%.
“Isto sugere que em tempo de COVID-19, ou os doentes passaram a pedir a ativação dos cuidados pré-hospitalares por motivos mais triviais, ou terão mudado os protocolos de atendimento que determinam as ativação desses meios.”
Entre 2017 e 2019 havia uma associação forte entre as ocorrências pré-hospitalares de alta prioridade e o número de mortes, como seria de esperar. Em 2020, esse padrão deixou de existir.
“Esta mudança poderá ser em parte explicada pela relutância dos doentes em acionar os meios de assistência pré-hospitalar, mesmo em casos de sintomatologia que justificaria suporte avançado de vida ou suporte imediato de vida, por medo de serem infetados com Covid-19.”
Também aqui outra explicação possível é que, em tempos de Covid-19, os critérios de classificação de prioridades para cuidados pré-hospitalares tenham mudado.
De acordo com a análise da ENSP, observou-se por outro lado um associação forte entre o número de mortes e o número de ocorrências pré-hospitalares classificadas como prioridade baixa e reencaminhadas para a Saúde24.
“Esta mudança poderia significar que tenha havido uma mudança na política de acionamento destes meios a favor de casos COVID-19, com prejuízo da sua utilização em casos graves não Covid-19.”
Diminuição da oferta de cuidados de saúde
Desde o início da Pandemia, observou-se uma quebra muito significativa no número de prestações dos serviços de saúde portugueses, inclusive ao nível das intervenções cirúrgicas de natureza urgente, que tiveram uma redução de 9%.
Os cuidados de saúde primários mudaram significativamente o seu modelo de prestação. As consultas não presenciais e não específicas, que substituíram as tradicionais, aumentaram 116%, o que fez com que o total de consultas médicas nos cuidados de saúde primários tenha caído apenas cerca de 4%.
“Estes números sugerem uma reorientação extraordinária do modelo de prestação nos cuidados de saúde primária e valerá a pena estudar o impacto desta mudança na qualidade dos cuidados prestados.”
Excesso de mortalidade na faixa dos +85 e as ondas de calor
No período em análise, registaram-se mais 7 529 óbitos do que aqueles que seriam de esperar com base na mortalidade média dos últimos cinco anos – mais 12 %. O excesso de mortalidade afetou principalmente as pessoas com mais de 85 anos. Houve um aumento de 18% em relação à média dos últimos 5 anos.
Este aumento de 18% corresponde a 4920 mortes em excesso, entre 16 de março de 30 de setembro. A DGS registava 1944 óbitos atribuídos à Covid-19 na faixa etária +85 anos, até 8 de novembro.
No seguimento dos números divulgados pelo estudo do INE, este Instituto e a própria DGS indicaram que o pico de mortes no período do verão pode ser explicado pelo facto de o mês de julho de 2020 ter sido extremamente quente e com várias ondas de calor. Neste contexto, os idosos, enquanto população mais vulnerável, teriam sido os mais afetados.
A ENSP refere que a explicação desse excesso ser causado por ondas de calor pode ser considerada para determinados segmentos, mas não em todo o segmento.
Considera-se que ocorre uma onda de calor quando num intervalo de pelo menos 6 dias consecutivos, a temperatura máxima diária é superior em 5ºC ao valor médio diário no período de referência. Neste sentido, poderá ter havido uma onda de calor nos períodos de 24 a 29 de maio e de 15 a 17 de julho de 2020.
“Note-se que no período em que do ponto de vista meteorológico se registou uma onda de calor, a temperatura máxima não ultrapassou os 32ºC e os 36ºC – em maio e julho, respetivamente. Estas são temperaturas que dificilmente podem explicar alterações fisiológicas que causem excessos de mortalidade desta magnitude.”
A análise destaca, porém, que o conceito de o valor absoluto da temperatura máxima e a diferença entre a temperatura diurna e noturna têm igualmente importância no impacto na saúde.