A posição mais crítica e proactiva assumida pela Cidadania XXI face à gestão da pandemia em Portugal valeu-lhe uma associação a ideologias mais negacionistas, mas os seus fundadores garantem que esta posição não podia estar mais longe da verdade. Em entrevista ao The Blind Spot, António Nogueira, Elisabete Tavares e Tiago Lucena explicaram que a iniciativa defende a importância das evidências científicas nos processos de decisão, e quer promover uma democracia mais participativa, sustentada pelo diálogo, pela informação isenta e pela pluralidade de opinião. Falam ainda numa narrativa parcial, num jornalismo pouco isento e crítico e no aumento da censura.
Porquê a necessidade de criar esta iniciativa?
A Cidadania XXI surge da necessidade, diagnosticada em 2020 com a gestão sanitária aplicada à pandemia, de maior debate, maior diálogo e maior pluralidade de opinião. Os elementos fundadores da plataforma cívica cedo sentiram que muitas medidas foram apresentadas sem fundamentação técnica suficiente, dentro de uma total desproporcionalidade e equilíbrio, que iria trazer demasiados impactos à sociedade portuguesa, sendo fundamental um debate alargado que não encontrámos nos órgãos de comunicação social.
E o que pretendem?
O grande objetivo da plataforma é criar espaço para que haja um debate aberto, alargado e plural, relativamente aos grandes temas que marcam a atualidade portuguesa (e mundial), procurando envolver a sociedade civil de uma forma ativa rumo a uma democracia mais participativa, mais madura e mais inclusiva.
Quais os pontos mais críticos da abordagem feita à pandemia?
É para a Cidadania XXI evidente que o confinamento é tomado como um dogma inquestionável, o que repudiamos, dentro de uma extensa lista de medidas que não são apresentadas com suporte técnico e científico suficiente para esclarecer e convencer a opinião pública. O fecho de setores inteiros de atividade, a redução de horários de espaços comerciais, a proibição de deslocação entre concelhos, a inibição da atividade desportiva, a proibição da venda de certos produtos em certos momentos, etc., são medidas radicais que implicam uma inquestionável defesa técnica que não temos visto. Também o fecho de creches e escolas carece de fundamentação, além de envolver riscos de provocar danos colaterais potenciais elevados, incluindo ao nível da saúde mental das crianças e jovens. O fecho das escolas também tem o potencial deixar algumas crianças e jovens mais expostos a ambientes familiares violentos, sem terem o suporte da escola, que normalmente funciona como veículo de proteção e monitorização. Na saúde, o adiamento de consultas, tratamentos e exames de diagnóstico deixou um rastro de desespero em famílias que se viram privadas do acesso a cuidados de saúde. Esta situação tem sido causadora de mortes em excesso por doenças não covid-19.
As vozes mais críticas dizem que Portugal apenas segue os outros, a maioria, e não tem coragem para tomar decisões diferentes. Concordam?
Achamos perigosa a métrica do que os outros países fazem, sobretudo quando olhamos para o mundo e vemos diversas estratégias com diferentes resultados – se medidas como o confinamento e o encerramento de certos setores de atividade fossem realmente fundamentais acreditamos que o mesmo teria um reflexo óbvio nos resultados. Ao final de 12 meses, Portugal está em 17º lugar do mundo em mortalidade covid-19 por milhão, muito à frente de países ou regiões com melhores resultados, sem terem adotado as mesmas medidas radicais.
O governo podia ir contra entidades de referência internacionais?
Portugal, enquanto integrado em diversas estruturas de cooperação internacionais, deve ouvir e analisar os dados que estas entidades de referência produzem, mas deve também tomar as suas próprias decisões fundamentadas na análise detalhada de todos os dados e no racional equilíbrio entre benefícios e impactos em toda e qualquer medida ou restrição.
Mas o Governo garante estar a seguir as recomendações de um conselho de especialistas. Seguimos a política ou a ciência?
Ao final de um ano, e dado o contexto internacional (diferentes países e regiões com diferentes estratégias) e toda a ciência produzida – incluindo a ciência observada na realidade – acreditamos que muitas decisões do Governo têm sido meramente políticas e não fortemente fundamentadas na evidência científica.
Houve má comunicação entre o governo e os cidadãos?
Mais que má comunicação houve e continua a haver uma total indiferença do Governo perante outras opiniões e visões, um total desprezo pelo debate aberto e plural e, sobretudo, um tratamento infantilizado dos cidadãos – patente na contínua culpabilização dos portugueses pelos maus resultados obtidos pelo Governo na gestão sanitária.
Como vê o papel dos órgãos de comunicação social e das redes sociais neste processo?
Os meios de comunicação social, enquanto principal palco do espaço público e fonte de formação da opinião pública, têm tido um péssimo papel em todo o processo ao subscrever a narrativa do governo: tanto ao nível das decisões como na perseguição a todos os que discordam com as posições dos responsáveis políticos. O Jornalismo sai muito mal na fotografia final, tendo abdicado do espírito crítico, da análise e investigação aprofundada, e dos seus princípios deontológicos mais básicos.
Os portugueses acreditam cegamente no que veem e ouvem sem espírito crítico?
Apesar da comunicação social procurar transmitir a ideia de um apoio massivo ao Governo e DGS constatamos que cresce diariamente uma onda cada vez mais crítica às escolhas e decisões que o Governo tem assumido, reflexo das constantes previsões falhadas e do impacto das consequências da gestão sanitária desproporcional. Acreditamos que o Governo ao manter-se autista e intransigente nos dogmas que a sua narrativa impõe irá afastar cada vez mais a opinião pública e perderá a base de apoio popular – e o mesmo irá refletir-se sobre todas as restantes forças políticas que têm apoiado este rumo.
Estão a abrir mão dos direitos e liberdades sem sequer questionarem a ordem das coisas? Porquê?
Dado o constante clima de medo e pânico que o Governo e a comunicação social incentivam é natural que muitos cidadãos ainda sintam alguma legitimidade na suspensão de direitos e liberdades. No entanto, é cada vez mais evidente que é um excesso e um abuso de poder que terá as suas consequências eleitorais, assim como um forte impacto na confiança que os cidadãos colocam nas instituições públicas.
O que é que uma iniciativa como a vossa pode fazer?
O grande foco da plataforma, sobretudo ao nível da associação sem fins lucrativos que a promove, é a ativação da sociedade civil. Acreditamos que a cidadania ativa tem um forte défice na sociedade portuguesa e é essa a nossa principal missão. A sociedade ativa tem de ser mais dinâmica, mais proactiva, mais exigente e mais fiscalizadora dos poderes públicos – aquilo que consideramos ser o 5º poder, ainda adormecido. A Cidadania XXI pretende inaugurar uma nova etapa na História de Portugal, onde os cidadãos se envolvem mais nas grandes questões e exigem uma democracia mais participativa, mais inclusiva e mais focada no bem-comum.
Como lutam contra a censura?
Na Plataforma Cidadania XXI não acreditamos em “censura do bem”. Censura é censura, seja por que razão for, e a mesma deve ser denunciada e combatida em toda e qualquer frente. É perfeitamente inadmissível que em pleno séc. XXI em Portugal opiniões sejam eliminadas ou perseguidas, e tudo faremos para combater esta tendência preocupante.
A censura ligada à Covid está a aumentar em Portugal? Liderada por quem?
Desde o primeiro dia que é evidente que há uma forte promoção da narrativa única, que não só não permite o debate e o contraditório como censura opiniões divergentes. Vemos especialistas portugueses, com currículos e experiência inquestionáveis, a ser eliminados do espaço público e mesmo ser alvo de campanhas difamatórias sem que haja contra-argumentação ao que defendem. O Covid trouxe um tom monocromático ao espaço público mediático, o que é assustador para nós que ao seguirmos diversas vozes dissonantes não as encontramos refletidas na comunicação social.
A luta contra as fake news e as “meias verdades” é legítima ou forma de censura?
Nada temos contra o escrutínio dos factos e contra a luta contra as Fake News, mas questionamos porque encontramos muitos exemplos em órgãos de comunicação social sem qualquer escrutínio ao passo que uma parte da luta contra a desinformação, por vezes, parece ter uma agenda ideológica e não um objetivo de apurar a verdade pela verdade.
Como vê a atuação dos fact-checkers no controlo da informação que circula?
Dentro do combate às fake news, o fact-checking cresceu no sentido do apuramento dos factos. Na teoria seria um excelente layer de verificação, que poderia ser muito útil aos cidadãos num contexto de excesso de informação a circular – que torna difícil ao cidadão médio o espírito crítico e a análise em detalhe. No entanto, vemos que este fact-checkers muitas vezes seguem uma agenda ideológica e procuram defender perspetivas e opiniões – no caso da pandemia claramente suportam a narrativa oficial -, o que não se coaduna com a sua missão. A verdade não pode estar dependente do emissor, e o fact-checking não pode excluir a própria comunicação social. Na prática, em muitas situações verificamos que o fact-checking é uma extensão da censura das redes sociais e da própria censura que os media atualmente estão a praticar – contribuindo para a narrativa única em torno da pandemia, o que viola o próprio princípio do conceito de fact-checking.
Qual o perigo inerente a esta tendência?
Sem diversidade e pluralidade, sem debate e sem diálogo, sem divergência e sem diferentes visões e perspetivas, é para nós impossível falar em democracia ou liberdade de expressão. O perigo é precisamente a construção de dogmas camuflados de verdades,
São colocados no grupo dos negacionistas?
Desde cedo nos colocamos no “caminho do meio”, sustentando as nossas visões em ciência e na realidade observada pelo mundo fora – que em vários aspetos desconstrói a narrativa imposta em Portugal. Dado o clima polarizado em que basta sair ligeiramente da narrativa oficial para ser considerado “negacionista” é natural que nalgum caso já tenhamos sido confundidos mas não aceitamos a conotação e, se necessário, seguiremos todas as vias ao nosso dispor para impedir a colocação de rótulos e conotações depreciativas e que impeçam a discussão e a liberdade de opinião.
O “radicalismo” ou a expressão de algumas opiniões menos fundamentadas compromete a credibilidade de grupos como o vosso?
O principal radicalismo que identificamos na sociedade portuguesa vem do próprio Governo, DGS e especialistas sanitários promovidos por estas entidades; sendo que obviamente existem opiniões mais ou menos fundamentadas em todas as barricadas. Somos responsáveis apenas pela nossa opinião, e procuramos ser rigorosos o suficiente para não nos precipitarmos quando emitimos comunicados, opiniões ou análises. Obviamente a polarização torna mais difícil o diálogo, e a todos tem de ser permitido o erro, a evolução ou mesmo mudança de opinião: tal como assistimos com o próprio Governo e responsáveis da DGS.
A vossa imagem está muito ligada à contestação das medidas de combate à Covid. E quando a pandemia acabar? Onde fica a Cidadania XXI?
A Cidadania XXI não é um projeto que se esgota na pandemia. Sentimos que a pandemia trouxe ao de cima muitos dos problemas transversais à sociedade portuguesa – a falta de uma sociedade civil ativa e dinâmica – e trabalharemos todos e quaisquer temas que sejam relevantes para o bem-comum no futuro. Queremos contribuir para uma sociedade melhor, mais tolerante, mais inclusiva, mais democrática, mais justa e mais livre, e queremos que as grandes questões (corrupção, clima, liberdade, igualdade, privacidade, justiça, dignidade, etc.) estejam cada vez mais em cima da mesa e sejam cada vez mais respondidas assertivamente para podermos evoluir para um futuro melhor para todos, sem exceção.
Como avaliam o efeito das vossas ações? Onde já conseguiram chegar?
De um modo geral sentimos que as nossas ações e atividades nos últimos meses têm permitido um alargamento do debate e têm promovido o contraditório à posição do Governo e DGS. Hoje a comunicação social não tem o monopólio do espaço público, o que apesar dos riscos em termos de fake news nas redes sociais não deixa de ser positivo para uma sociedade mais aberta e dinâmica. Os nossos conteúdos têm chegado a muitos cidadãos e estamos certos que teremos a nossa quota-parte de responsabilidade naquele que é atualmente o debate mais sério e importante na nossa sociedade: apesar da polarização que tem sido promovida não acreditamos que haja um cidadão que não queira o melhor para o bem-comum, e apenas com todas as visões, perspetivas e dados em cima da mesa poderemos tomar melhores decisões enquanto sociedade.
Fizemos um conjunto de iniciativas, com destaque para um Manifesto, para o Ciclo de Tertúlias da Junqueira, realizado entre os meses de Novembro de 2020 e Janeiro de 2021, e para a divulgação de duas cartas abertas à DGS. O Manifesto, já subscrito por milhares de apoiantes, defende uma estratégia mais moderada, fundamentada, ponderada, proporcional e equilibrada da crise sanitária em Portugal.
O Ciclo de Tertúlias consistiu em debates temáticos, sendo que o primeiro, sobre ‘Estado de Direito e Constituição em 2020’, contou com a participação da Dra. Maria José Morgado, magistrada do Ministério Público, e do Sr. Bastonário da Ordem dos Advogados, o Dr. Luís Menezes Leitão.
Seguiu-se a Tertúlia dedicada à ‘Arte, Cultura e Entretenimento em 2020’ e a Tertúlia sobre ‘As Crianças e o Ensino em 2020’, tendo esta contado com a presença do Prof. Carlos Neto, professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana, da Dra. Joana Dias Alexandre, psicóloga, professora universitária e presidente do Conselho Pedagógico do ISCTE, e do Dr. João Mendes Ferreira, psicanalista, da Sociedade Portuguesa de Psicanálise.
A Tertúlia dedicada ao tema d ‘O Jornalismo em 2020’ teve a participação dos jornalistas José Manuel Fernandes, ‘Publisher’ do Observador, Octávio Lousada Oliveira, do Expresso, e Paulo Pena, fundador do ‘Investigate Europe’.
A Tertúlia sobre ‘A Saúde Mental em 2020’ contou com a participação da Dra. Joana Amaral Dias, psicóloga, do Dr. Rui Rocha Martins, psiquiatra, e da Dra. Joaquina Castelão, presidente da Associação FamiliarMente e a Tertúlia sobre ‘Os Efeitos Sociais da Pandemia’ teve a participação do Prof. Jorge Torgal, membro do Conselho Nacional de Saúde Pública, da Dra. Raquel Varela, historiadora, e do Prof. Santana Castilho. As Tertúlias contaram ainda com a presença, na assistência, de diversas personalidades de vários setores que contribuíram, com as suas questões e observações, para o debate das diferentes temáticas.
Também reunimos com diversos grupos parlamentares de partidos. O objetivo foi o de relatar as nossas preocupações sobre a gestão da crise na saúde e também debater algumas alternativas.
Como vê o país daqui a um ano? Estaremos no rescaldo da pandemia ou ainda na gestão diária?
Se, por um lado, sentimos que o pânico e o trauma causados – tal como os impactos económicos e sociais da gestão sanitária – demorarão anos para ser resolvidos, a pandemia está claramente numa reta final e muito provavelmente o inverno de 2021/2022 já nos lembrará tempos pré-pandémicos. Mas o rescaldo será duro e doloroso, sobretudo para as classes mais desfavorecidas e para os sectores mais afetados, e será fundamental uma maior solidariedade entre os cidadãos. Daqui a um ano estaremos também numa excelente fase para um debate alargado sobre uma nova estratégia para Portugal, em que toda a sociedade civil será chamada à reflexão sobre o futuro que queremos deixar às gerações vindouras.