As vacinas que todos nós fizemos são seguramente um dos grandes avanços em Saúde Pública, tendo permitido poupar inúmeras vidas humanas, sofrimento e sequelas de várias doenças graves (tétano, difteria, poliomielite, meningite bacteriana, entre outras).
Enquadramento histórico
Esta história começa , após varias tentativas mais ou menos empíricas de exposição controlada a agentes infeciosos ( quem não se lembra das “festas da varicela” de antigamente ou da tentativa de expor as crianças a sarampo na ideia de que a imunidade adquirida frente a esta doença as poupasse de complicações graves da mesma quando adultos), com a descoberta da vacina da varíola em 1796 por Edward Jenner, médico de província inglês que se apercebeu de que as leiteiras expostas à varíola bovina , após uma doença benigna, ficavam imunizadas frente à varíola. Por este motivo, chamou ao procedimento de inoculação, vacinação (de varíola bovina- em latim, vaccinia). Esta descoberta culminou com a erradicação da varíola em 1979, tendo sido a única doença infeciosa em que se conseguiu este feito. Outros sucessos se seguiram, como a vacinação contra a raiva, conseguida pela primeira vez por Pasteur, contra a poliomielite, o tétano e a difteria, tendo controlado a maioria das mais graves doenças infeciosas.
A ideia subjacente à vacinação é simples- introduzindo no organismo um agente infecioso morto ou enfraquecido ou um mero fragmento do mesmo, cria-se imunidade frente a um ulterior ataque por parte do mesmo agente. Portanto, o primeiro e principal objectivo é a proteção do vacinado face pelo menos às consequências graves de uma doença infeciosa. Em algumas vacinas, a imunidade é de tal ordem que torna impossível, ou quase, ao vacinado ser portador do agente da doença, mesmo que sem sintomas (febre amarela, sarampo, hepatite A e B, varíola, poliomielite, por exemplo) – diz-se que se tratam de vacinas esterilizantes, sendo este tipo de vacinas que consegue a eliminação de doenças infeciosas. Outras há, que por vicissitudes da resposta imunológica (sobretudo em relação a agentes respiratórios) protegem o individuo das consequências graves da infecção (pneumonia bacteriana, meningite , CoVid, por exemplo) , mas não de poder ser portador do agente – trata-se de uma imunidade não esterilizante, não permitindo a eliminação dos agentes infeciosos , mas permitindo o controlo de graves doenças , uma vez que limitam muito a sua severidade.
Riscos da vacinação
Como todos os bons medicamentos, as vacinas comportam também riscos, devendo ser usadas com sabedoria, uma vez que se pretende que sejam administradas a indivíduos saudáveis e que eventuais reacções adversas inesperadas podem pôr em causa a confiança das populações face àquela vacina em particular e muitas vezes a todas as outras.
Por exemplo, em 1976, nos Estados Unidos da América, faleceu um jovem soldado por um quadro de pneumonia fulminante tendo sido identificada uma estirpe de gripe suína H1N1. Temendo uma epidemia semelhante à de 1918, de má memória (a pneumónica, outra estirpe de H1N1, matou entre 20 a 50 milhões de pessoas entre 1918 e 1919), foi decidida a vacinação de toda a população americana. No entanto a campanha teve de ser interrompida por terem existido complicações neurológicas, não tendo por outro lado existido pandemia. Este fiasco levou à instalação de movimentos antivacinas e traduziu-se numa desconfiança crescente face à vacinação.
Por curiosidade, em 2009, registou-se desta feita, uma pandemia de gripe H1N1, tendo sido decidida a vacinação dos grupos de risco dada a relação benefício risco ser, apesar de tudo, favorável. No entanto, as previsões iniciais sobre a gravidade da pandemia acabaram por não se confirmar, tendo ocorrido raros efeitos neurológicos da vacina, o que numa era de informação e contrainformação acabou por gerar alguma desconfiança. Mais tarde, em 2018, nas Filipinas tivemos outro exemplo de como as coisas podem correr mal- uma vacina contra a dengue (uma doença particularmente ingrata de vacinar, uma vez que anticorpos contra uma primeira infecção podem de forma contra-intuitiva agravar uma infecção posterior –fenómeno de potenciação mediada por anticorpos ou em língua inglesa antibody dependent enhancement- ADE). O que parecia seguro em ensaios clínicos limitados, originou casos de ADE que culminaram na morte de cerca de 140 pessoas, maioritariamente crianças quando foi aplicada em massa. O fiasco ainda se arrasta em tribunal e traduziu-se, mais uma vez, pela desconfiança face a todas as vacinas, que provavelmente contribuiu para o ressurgimento da poliomielite e do sarampo naquele país.
Vacinas na atual pandemia
Na pandemia actual de CoVid-19 a vacinação é da mais alta importância, tendo-se tratado de um feito histórico o início da vacinação em massa cerca de um ano depois do início da pandemia, só possível pela quantidade de recursos alocados. A vacinação contra a CoVid, tratando-se de uma vacinação não esterilizante (permite portanto diminuir o contágio mas não evitá-lo), confere principalmente protecção ao individuo (indiretamente também alguma à comunidade), evitando situações graves, complicações e morte. Por conseguinte é de particular importância nos grupos em risco de doença mais grave (adultos de idade mais elevada sendo que as complicações são mais frequentes acima dos 40 anos, obesidade ou excesso de peso, diabetes, situações de doença crónica).
Infelizmente têm sido identificados alguns riscos destas vacinas, nomeadamente complicações trombóticas (embolia pulmonar e outras complicações vasculares, síndroma de trombose venosa com diminuição das plaquetas), imunológicas, neurológicas e inflamações cardíacas (miocardite e pericardite), todos eles raros mas que, em populações de baixo risco clínico podem dificultar a determinação da relação risco –benefício. Outros riscos são teóricos mas podem ser plausíveis. Tratando-se de uma vacina não esterilizante, a imunização maciça pode originar a seleção de variantes resistentes à vacina (uma vez que estas passam a ter vantagem competitiva num meio muito vacinado); podendo ainda existir fenómenos imunológicos que comprometam a resposta a futuras epidemias por coronavírus ou a futuras vacinações (o facto de poderem ocorrer não significa que vão ocorrer). Por outro lado, a dosagem da vacina (que tem importância nestas vacinas uma vez que existe a hipótese de a proteína na qual elas são baseadas- a proteína spike do SARS-CoV-2 ser um agente biologicamente activo) provavelmente necessitará de ser aferida antes de se equacionar a vacinação de determinados grupos, como por exemplo crianças.
Considero ser da mais alta importância uma estratégia prudente em populações de muito baixo risco da doença, uma vez que efeitos secundários inesperados, num ambiente onde reina a desinformação, poderão comprometer a aceitação destas e de todas as vacinas por parte da população, caso ocorram imprevistos.
Tiago Marques
Médico Infecciologista