A minha experiência soviética mostrou-me onde começa a liberdade e onde ela acaba.
Recordar os anos em que vivi na URSS não é o que mais me agrada. Não quero sentir que pertenço só ao passado, não quero desligar-me do presente e do que posso fazer no futuro. Esses anos de construção do Homem Novo parecem-me uma experiência social distante e desumana em muitos aspectos e, mesmo assim, há quem queira ressuscitar elementos desta experiência no nosso tempo.
Nos anos 70 e 80 do século XX, a Europa viveu em paz e com relativa liberdade de expressão e de circulação.
No Leste, as coisas eram diferentes.
As pessoas tinham muito pouco e diziam que eram felizes
Na União Soviética, as pessoas tinham muito pouco e diziam que eram felizes. Não havendo propriedade privada, toda a gente vivia em casas do Estado e andava de transportes públicos. O desejo natural de possuir um carro ou uma casa era satisfeito pelo Estado, mas após as pessoas estarem uns bons anos (ou décadas) numa fila de espera – isto porque a posse de bens particulares valiosos não era estimulada, pressupunha-se que ou se usavam os bens coletivos, ou “se alugava” ao Estado todos os bens de que se necessitava. (Parece que o Grande Reset de Klaus Schwab, fundador e Diretor Executivo do Fórum Económico Mundial, quer fazer mais ou menos a mesma coisa).
Aparentemente, isto parecia vantajoso, mas na realidade era uma forma de grande dependência. As pessoas, à excepção de quem pertencia à “nomenclatura”, pouco podiam fazer de forma autónoma. Por exemplo, obter uma casa era praticamente impossível para um casal jovem. Para isso, teria de provar a uma comissão que precisava da casa pois, se na habitação dos pais a área fosse superior a 9 metros quadrados por pessoa, nem sequer era colocado na fila de espera e, caso fosse, podia levar décadas a ter uma casa nova. Em certas zonas do interior podia obter uma casa de serviço mais rapidamente, mas ficava obrigado a trabalhar numa empresa durante anos a fio e, se quisesse mudar de emprego, perdia a casa. Quem tinha mais dinheiro podia comprar uma habitação “cooperativa”, mas para isso teria de estar numa fila de espera para aderir à cooperativa e, depois, noutra fila até a casa estar construída, além de posteriormente não poder vendê-la, nem deixá-la em herança aos filhos.
Nesse tempo, eu, jovem estudante recém-casada em Moscovo, tinha apenas um sonho: conseguir um quarto para duas pessoas – era esse o limite luminoso das minhas aspirações habitacionais. Só o consegui passados 3 anos, após “subornar” uma funcionária (por sugestão dela) com um vestido elegante que levei de Portugal. E, mesmo assim, o meu marido não podia entrar legalmente, coisa que deu origem a alguma criatividade da nossa parte no que toca a entrar no edifício.
Para quem pertencia ao governo ou a importantes instituições do Estado, as coisas eram bastante mais fáceis e rápidas.
Com a compra de carros, o sistema era praticamente o mesmo. O governo incentivava as deslocações em desconfortáveis transportes públicos e desincentivava a posse de carros particulares. As cidades não estavam planeadas para grande volume de tráfego e, ao longo das ruas, havia agradáveis “ecopistas” ladeadas por árvores que as pessoas usavam para andar … a pé (o clima não permitia usar bicicletas todo o ano).
A inexistência de propriedade privada coexistia com o sistema de controlo do local de residência.
Durante os anos soviéticos, com a ajuda da chamada “propiska” (registo obrigatório de residência), o Estado regulava a migração interna e restringia as deslocações de uma região para outra. Viver sem “propiska” era punido com multas, além de não se poder aceder a nenhum serviço do Estado. Existia um passaporte interno, principal documento de identificação, onde era aposto o carimbo de residência, a “propiska”. Só podias residir nesse local e, caso quisesses mudar de cidade, era preciso pedir autorização e apresentar justificação aos serviços da Polícia. Se não tivesses carimbo de residência em determinada cidade, podias ter problemas. Além disso, o registo afectava (e afecta) o valor das prestações e subsídios, uma vez que estes variam de região para região do país. Também só se podia ter assistência médica regular, dirigir-se às autoridades se se tivesse um registo permanente ou temporário na cidade.
Este sistema foi abolido em 1993, mas reativado em 2013.
Os antecessores do Passaporte Digital da OMS
Na URSS não se podia viajar para outro país como fazemos hoje. Para isso teria de ter outro passaporte para viagens ao estrangeiro. O processo de obtenção de autorização de saída era difícil. Existia até uma coisa que eu durante muitos anos não percebi: o famoso “visto de saída”. Eu sabia que, para entrar na URSS, precisava de visto, mas não imaginava que também era preciso um documento idêntico para sair. Mesmo para cidadãos estrangeiros, esse visto precisava ser pedido às autoridades.
Ainda assim, muitos tentavam “furar as regras”. Cheguei a viajar de comboio no país numerosas vezes sem autorização, bastando para isso manter-me calada ao longo da viagem e imitar o comportamento dos outros passageiros. O importante era “agir como toda a gente”, coisa que os portugueses sabem muito bem fazer.
A censura vem de longe
Em novembro de 1917, o Sovnarkom (Conselho dos Comissários do Povo, ou seja, o governo bolchevique de Lenine) aprovou uma das suas primeiras leis: a censura da imprensa, justificando isto como sendo parte da luta contra os inimigos, a contrarrevolução.
Passadas décadas, em 1980, um dos elementos da vida soviética continuava a ser a censura prévia e a existência de listas de livros, músicas e filmes proibidos (hoje diríamos “cancelados”). O Ministério da Educação enviava às escolas listas de grupos musicais ocidentais que os jovens estavam proibidos de ouvir. Também é verdade que parte da juventude soviética arranjava forma de obter essas músicas – nem todos os jovens eram conformistas.
Todas as publicações na imprensa, em livros ou revistas, estavam sujeitas à censura prévia do Estado. As obras incluídas nestas listas, caso fossem publicadas no estrangeiro, eram apreendidas na alfândega.
Mas não quero só falar do passado.
O longe que se tornou perto: tudo boas intenções
Hoje, não vale a pena esconder que caminhamos para novas sociedades autoritárias e de vigilância digital na Europa.
Há dois países da Europa Ocidental, considerados o nosso modelo de liberdade e prosperidade, que estão a caminhar para o autoritarismo: a Alemanha e a França.
Na Alemanha, após a aprovação de uma lei muito restritiva em 2021, qualquer pessoa que publique “discurso de ódio” ou “insultos” (uma mera opinião crítica pode caber nesta designação) pode ser condenada a vários anos de prisão. Os autores de certas publicações são alvo de ações policiais, conteúdos nas redes sociais podem ser rapidamente retirados, bloqueados ou as contas suspensas, com ou sem decisão judicial.
O jornal alemão Bild perguntou recentemente: “Ainda é possível expressar abertamente opinião na Alemanha? Muitos já não acreditam nisso!”
Mais de metade dos alemães (55%) acham que não têm liberdade de expressão. Além disso, 37% dos entrevistados expressam as suas opiniões apenas “cautelosamente”. Em 2021 este valor era de 44%, em 2017 de apenas 25% – uma deterioração significativa da situação. Não será por acaso que muitos alemães estão a emigrar para o Uruguai.
A Europa começou no ano passado uma cruzada contra a liberdade na Internet. A Lei dos Mercados Digitais (DMA) e a Lei dos Serviços Digitais (DSA) vieram seguir os passos da China e da Rússia no controlo das redes sociais e da informação em geral. As novas regras, dizem as autoridades europeias, “servem para proteger os utilizadores de conteúdo prejudicial e ilegal. A DSA melhorará significativamente a remoção de conteúdo ilegal, garantindo que tal seja feito o mais rapidamente possível”. Tudo boas intenções, como se vê. Agora, já é legalmente possível restringir o acesso às redes sociais na UE, como arma para combater tumultos e revoluções, como o presidente francês anunciou recentemente que faria. Mas a União Europeia não fica por aqui. A partir de 25 de agosto próximo, 19 plataformas da Internet, incluindo o TikTok, Instagram e Twitter, serão obrigadas na UE a restringir rigorosamente a chamada desinformação. Se alguém apelar à revolta ou à insubordinação, isso será instantaneamente bloqueado. Sabemos o que isso significa: a instituição do Ministério da Verdade e o controlo da actividade política de rua.
Não, não nos resignamos a isso. Não nos resignamos a perder a liberdade, especialmente a de expressão e de circulação.
Esta perda é insidiosa, faz-se com pequenos passos, para que poucos se apercebam e alegam-se motivos “de conveniência”.
A minha experiência soviética mostrou-me onde começa a liberdade e onde ela acaba. Não quero repetir esse caminho.
Cristina Mestre, psicóloga e tradutora