O recente caso das gémeas brasileiras é um insulto aos contribuintes nacionais, aos utentes do nosso SNS e, até, aos luso-brasileiros em listas de espera. Mas mais do que isso, mostra novamente o nepotismo, a falta de ética e a subserviência ao poder que se vive em Portugal.
O tratamento privilegiado devido a intervenções superiores (e acatamentos inferiores), simbolizam bem a displicência e a irresponsabilidade com que os dinheiros públicos são (des)governados.
Resumindo o que se sabe, o filho do presidente, comunica com o pai para lhe pedir para interceder, o presidente encaminha o pedido para as entidades competentes, o secretário de estado marca uma consulta e, a partir, daí, tudo acontece. Logo após as crianças se nacionalizarem, receberam o tratamento e umas cadeiras elétricas de 65 mil euros. Depois, tal como o diretor de neuropediatria do Santa Maria terá previsto e avisado o presidente através de e-mails, regressaram ao Brasil.
Ou seja, estes pais recorreram a um país onde não vivem e com o qual não têm praticamente relações, e, sem pagarem um cêntimo, custaram ao seu sistema de saúde, depauperado e com gritantes deficiências, mais de quatro milhões de euros.
Mas o comportamento dos pais, dadas as circunstâncias, é relativamente compreensível. O problema não foi o que eles tentaram fazer. No fundo, o que um progenitor não tenta fazer pelos seus filhos? Muitos pais desesperados usam naturalmente todo o tipo de expedientes pela saúde dos filhos. O problema foi terem conseguido fazê-lo. E, provavelmente, ainda mais grave, foram as reações dos nossos governantes e o que isso revela sobre eles e sobre o país.
O presidente, tal como já fizera antes com o caso TAP, deixou que usassem o seu nome, para benefício próprio, ou neste caso do seu filho, sem parecer estar muito interessado em apurar responsabilidades dessa suposta usurpação.
No caso do voo da TAP, foi para mudar um voo com mais de 200 passageiros, neste caso, para solicitar a intervenção do governo no caso das gémeas. No caso da TAP, o secretário de estado, Hugo Mendes, reagiu pedindo à CEO da companhia para aceder ao pedido para não “perder o apoio político” do presidente, como ficou confirmado em e-mails vindos a público.
Neste caso, o secretário de estado da Saúde também terá acedido ao pedido do filho do presidente, que foi encaminhado ao governo. Isto para já não falar de outras coisas, a que já vamos ficando habituados.
Coisas, como ter dito que estava a ser confrontado com a situação pela primeira vez a quatro de novembro, quando como relata a Sandra Felgueiras, já tinha sido entrevistado anteriormente e falado pela primeira vez com a sua equipa da jornalista 11 dias antes.
Coisas como, ter feito um ar estupefacto quando foi questionado publicamente sobre a situação, quando já sabia de antemão a pergunta que lhe iria ser feita.
Coisas, como apenas ter recuperado a memória que, afinal, sempre comunicou com o filho sobre o assunto e teve intervenção no caso, quando soube que estava em curso uma investigação judicial. Investigação essa que vai recolher toda a informação sobre as intervenções do presidente no caso. Uma coincidência certamente.
Coisas como ter reencaminhado igualmente uma carta do seu filho pela mão do chefe da casa civil, que descreve o medicamento como a “única esperança de cura”. O que, a julgar pelos relatórios médicos, é totalmente falso.
Mas também o secretário de estado, Lacerda Sales, o mesmo que se emocionou por zero mortes covid, ignorando que na altura o excesso de mortalidade batia recordes no país e que os hospitais estavam com serviços mínimos, parece sofrer de graves transtornos de memória.
Quando confrontado, afirmou peremptoriamente que “nenhum secretário de estado tem poder para marcar consultas, como é óbvio”. Mas, afinal, parece terá sido mesmo ele a marcar a consulta, que, ao que parece, nunca deveria ter acontecido. Confrontado com os factos, o “óbvio” deixou de o ser e afirma agora ter de ir analisar o caso.
Infelizmente, este caso não será assim tão raro. O que é raro são o conjunto de circunstâncias que o levaram a ser público, a serem divulgadas provas e a ser investigado.
A reação dos intervenientes, com os habituais esquecimentos e lapsos de memórias, indicia que esperavam que, como em muitos outras situações, o caso se desvanecesse. Tal como a dos nossos governantes, a memória coletiva é curta e facilmente manobrável.
Acontece que, por indignação de uns e coragem de outros, como o diretor do Santa Maria, que denunciou a situação, ou da Sandra Felgueiras, que a investigou, o caso prossegue.
A displicência e a ligeireza como estas coisas acontecem em Portugal fazem com que a cada pedra que se levanta saía uma nova revelação comprometedora. O cenário pré-eleitoral também poderá ter contribuído para que diferentes interesses entrassem em ação e dificultassem a ocultação dos factos.
Não sendo porventura o caso mais grave dos últimos anos, e apesar das tentativas de ilibar preventivamente o presidente de qualquer falha ética, será eventualmente aquele com mais pernas para andar e mais difícil de travar.
Terão ainda as entidades judiciais, a independência e os meios suficientes para apurar responsabilidades e penalizar os responsáveis, sejam eles quem forem?