O governo francês está determinado em combater, o que considera ser desinformação em matéria de saúde, através da criminalização do abandono dos tratamentos recomendados pelo estado e da promoção de tratamentos médicos alternativos. Os infratores poderão ser condenados a pagar multas de dezenas de milhares de euros e penas de prisão até três anos.
A Assembleia Nacional francesa aprovou no passado dia 14 de fevereiro um projeto que criminaliza a negação e o abandono de tratamentos médicos, após duas votações, sem debate público e sem que este se apercebesse. O apoio do Partido Socialista foi fundamental para a aprovação. Tudo feito em nome da ciência e do combate à desinformação promovida nas redes sociais.
A negação da “ciência” é punida sob várias formas. A prisão e uma multa para quem abandone ou se abstenha de tratamentos médicos constitui objeto desta nova legislação, recusada pelo Senado no final de 2023, em virtude de considerar lesar as “liberdades públicas”. De acordo com as novas disposições, qualquer abandono ou a não utilização de tratamentos médicos passa a ser passível de uma multa de 30 000 (que pode ir até aos 45 000 euros no caso de incitamento ativo) e ainda um ano de prisão (que pode ir até aos 3 anos no caso de incitamento ativo).
Sabrina Agresti-Roubache, Ministra da Saúde francesa, reagiu de imediato ao chumbo da legislação na primeira votação na Assembleia Nacional, tendo desde logo afirmado que ia rever a proposta legislativa. Nas suas palavras:
“Só para relembrar, o artigo 4 é o abandono dos cuidados, a provocação do abandono dos cuidados. Por isso, se alguém está doente com cancro e tem um guru 2.0, que lhe explica que tem de abandonar a quimioterapia e entregar-se à sopa e, ao comer a sopa, ele será salvo. Portanto, aqui está esta lei que eu vou defender com muita coragem com a maioria e também com o grupo socialista, que apoia esta lei, com os ecologistas. Vamos tentar reescrever em conjunto este artigo 4.º para que possa passar no hemiciclo mais tarde.”.
A legislação foi, efetivamente, aprovada durante a segunda votação.
Prós e Contras decidem as “liberdades públicas”: do Senado à Ordem dos Médicos
Entrevistado pelo jornalista Berkoff, o Senador francês Alain Houper contou que o Senado francês rejeitara o artigo em questão por este ser “inútil e exagerado”, visto que o assunto em debate, a recusa de tratamentos médicos, e a sua substituição pela falsa medicina dos gurus e charlatões, já está regulamentado no código da medicina. Houper acrescentou também que este projeto governativo é uma ameaça às liberdades públicas quando afirma “Eles ousam tudo.”. Finalmente, coloca em evidência a pertinência da data em que o debate é realizado, afirmando, por tal motivo que, “hoje estamos no dia de São Valentim e os franceses têm um amor, o amor pela liberdade. E querem colocar um muro entre os franceses e a liberdade.”.
Pelo contrário, a Ordem dos Médicos francesa é favorável ao projeto legislativo em debate, considerando-o mesmo um “instrumento necessário” que criminaliza o exercício ilegal da medicina e reforça a necessidade reforçar a prevenção social contra esta situação.
A criminalização e as liberdades públicas
As vozes discordantes na sociedade francesa têm-se manifestado, dado que o artigo 4 suscita, para muitos, a questão da liberdade do cidadão de aceitar ou de recusar um tratamento proposto.
Contudo, Olivier Veran, ex-ministro da Saúde e atual deputado, considerou que a experiência recente da crise sanitária de 2020 colocou em evidência o problema dos gurus. É que, em sua opinião, teria emergido um grupo de cidadãos “negacionistas” liderado por Didier Raoul que, apesar de ser um reputado médico francês, que propôs uma terapia diferente da indicada pelo ministério da saúde, tinha minado o sucesso da política de saúde do governo.
Em desacordo com o antigo ministro têm estado outros políticos, como Marine Le Pen, que contrapôs à perspectiva de Veran a experiência de políticos e muitos outros cidadãos que teriam sido teriam sido tratados por Didier Raoul.
Referências:
L’article 4 sur les dérives sectaires finalement réintroduit ! (youtube.com)
Dérives sectaires : l’Assemblée vote la création de délits contre les «gourous 2.0» (lefigaro.fr)
Article 4 de la loi sur les dérives sectaires : cet amendement qui inquiète (youtube.com)