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Marcello e Marcelo, a dupla impensável?

Marcelo Rebelo de Sousa é filho de Baltasar Rebelo de Sousa, Ministro do Ultramar de Marcello Caetano, o último presidente do Conselho de Ministros do Estado Novo.

Marcello Caetano esteve para ser padrinho de batismo de Marcelo de Sousa, e é em honra daquele que este se chama Marcelo. O padrinho de batismo acabou por ser Camilo de Mendonça, que foi o primeiro presidente da RTP. Marcello tinha sido o padrinho de casamento dos pais de Marcelo, e foi ele quem conduziu o carro que levou a sua mãe à maternidade para o dar à luz.

Embora Caetano tenha sido um dos arquitetos do Estado Novo, tomou algumas medidas para adoçar as arestas mais duras do regime durante a chamada “primavera marcelista”, após a destituição de Salazar em 1968. Referiu-se ao regime como um “estado social”, desenvolveu o conceito de “Estado Social de Direito”, que contrapôs ao de “Estado de Direito” (Depoimento: Rio de Janeiro, 1974, pp. 128-129), e mudou o nome do partido oficial, União Nacional, para Ação Nacional Popular. A PIDE (que já se tinha chamado PVDE), a temida polícia política, foi renomeada como DGS (Direção-Geral de Segurança). Marcello também aliviou a censura à imprensa e permitiu a criação de sindicatos independentes, que não vigoravam desde a década de 1920. Também a oposição foi autorizada a concorrer nas eleições de 1969.

Marcelo Rebelo de Sousa licenciou-se em Direito (1971) e doutorou-se em Ciências Jurídico-Políticas (1984), com uma tese intitulada Os Partidos Políticos no Direito Constitucional Português. É oriundo de Celorico de Basto, no distrito de Braga, onde tem raízes familiares, e de onde era natural a sua avó paterna.

Marcello, proeminente figura durante o regime salazarista, foi também professor de Ciência Política e Direito Constitucional e também aqui deixou a mesma influência nos vindouros. Pela primeira vez em Portugal se estudaram, do ponto de vista jurídico e sistemático, os problemas dos fins e funções do Estado, da legitimidade dos governantes e dos sistemas de governo. Ao longo da sua vida, publicou mais de 100 títulos, sobre Direito Administrativo e História do Direito Medieval Português.

Quando se deu o pronunciamento militar de 25 de Abril de 1974 tinha o autor destas linhas dezanove anos e estudava na Faculdade de Medicina do Porto. Fruto do impacto que a chamada “revolução dos cravos” teve na sua família, foi obrigado a abandonar os estudos e a iniciar uma atividade profissional logo em fevereiro de 1975.

Antes do golpe e do movimento revolucionário que lhe seguiu, tínhamos já preocupações com o futuro político do país, conscientes da necessidade de se implementar em Portugal um regime democrático. Por isso, desde muito novos, fomos participando em reuniões clandestinas em casa uns dos outros, tendo inclusivamente adquirido uma máquina duplicadora a stencil da marca Gestetner com o intuito de imprimir panfletos “revolucionários”.

Na primavera marcelista já se respirava uma brisa de liberdade. Por exemplo, compravam-se facilmente nas livrarias do Porto, como na Leitura, livros de Mao Tsé-Tung e de Leon Trotsky. Mesmo assim, entre 1972 e 1974, as lutas estudantis eram encarniçadas e o confronto com a polícia de choque por vezes violento. Mas depois de abril, concretamente em 1975, também o ambiente era de cortar à faca, com o perigo a espreitar por todo o lado, vindo da esquerda ou da direita radical. Nesse contexto do PREC fomos depor em Lisboa perante um tribunal militar como testemunha contra os supostos bombistas Ramiro Moreira (que Mário Soares amnistiou mais tarde) e Mota Freitas.

Se foi a guerra colonial o grande móbil da revolução de abril, é triste hoje ouvirmos na sociedade portuguesa vozes a defender a necessidade de se retomar o serviço militar obrigatório num país em Paz, a mesma obrigatoriedade que a geração de abril combateu nas ruas e nos quartéis.

São muito diferentes Marcello e Marcelo, ou é só uma questão de regime?

Marcelo é o estadista dos consensos, o que nos preocupa mais que as beijocas. Em democracia e liberdade preferimos os dissensos. Também sabemos e percecionamos que Marcelo é um acérrimo defensor do sistema partidário (a tal tese de doutoramento já o indiciava), desvalorizando a sociedade civil e a cidadania independente, mas os partidos não esgotam a democracia e a democracia não convive com consensos. O unanimismo é a antítese da democracia. As soluções para o país têm que ser refletidas e discutidas por todos os portugueses, em particular pela comunidade académica e científica. Mas também as organizações empresariais, sindicais e religiosas, as associações culturais e desportivas, entre outras instituições da sociedade civil, têm uma palavra a dizer na gestão dos destinos públicos.

Por outro lado, os deputados não representam hoje os cidadãos, dados os baixos níveis de participação eleitoral e a concomitante falta de representatividade. O mesmo se aplica ao Presidente. Num contexto em que se assiste ao avolumar da crise do sistema representativo, num país em que cada vez mais escolhemos governantes e não representantes, em que a “partidocracia” moribunda revela a sua inépcia, não faz o mínimo sentido o “centralismo democrático” de Marcelo.

A vitalidade do regime democrático, em Portugal ou em qualquer outro país, decorre precisamente da diferença de opinião e, sobretudo, da liberdade de expressá-la, que está, diga-se em abono da verdade, em queda livre. E é a cidadania que deve ser promovida e não a “partidocracia”, como faz Marcelo.

Os partidos do sistema também já não conseguem disfarçar a sua repulsa às manifestações livres da sociedade civil, que menosprezam com a superioridade moral que os caracteriza. Os preconceitos ideológicos das respetivas cartilhas não lhes permitem atuar em função do bem comum, mas de interesses mais ou menos dissimulados que enfraquecem a própria democracia que tanto referenciam nos seus discursos gastos e obsoletos. Pior, hoje vivemos em Portugal, aquilo que Manuel Maria Carrilho chama de “extremismo do centro”.

Marcelo está refém dos ditames de uma “democracia” plutocrática, no mínimo oligárquica, e de uma casta de políticos, num país que é dos mais pobres da Europa, mas mesmo assim dos mais sufocados com impostos. Precisamos de estadistas neste momento crítico que o país atravessa e não de deuses com pés de barro que depauperam todos os anos o erário público, e alimentam uma navegação à vista, incoerente, sinuosa e periclitante.

O populista Marcelo Rebelo de Sousa é tanto avesso à cidadania independente (e aos pequenos partidos fora do espectro político-partidário tradicional) quanto o elitista Marcello Caetano o foi, o que é mau para a democracia. A História julgará o que fez o segundo e a sua pretensa abertura democrática num contexto particularmente adverso de isolamento mundial a que Portugal estava condenado, muito fruto da política colonial e da restrição das liberdades cívicas, e o primeiro, pelo travão de liberdade que, em conluio com os partidos do arco governativo, foi aos poucos impondo num regime democrático em degenerescência desde esse longínquo abril do nosso (des)contentamento!

Carlos Magalhães

Fundador do MAIS – Movimento Cidadania Independente e do MCD – Movimento de Cidadania Democrática
Dirigente da PASC – Casa da Cidadania

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