A discussão sobre a restauração do serviço militar obrigatório (SMO) parece ser um daqueles casos clássicos em que não se diz o que se pensa, e não se pensa no que se diz. Vamos por partes! Este texto não é tanto sobre o SMO, propriamente dito, mas mais sobre as motivações e o momento que se escolheu (quem o escolheu, e porquê).
Começarei por fazer uma declaração de interesse, de forma que a reflexão subsequente não seja inquinada por objeções de ordem ideológica e/ou por qualquer outro postulado anacrónico. Nada tenho contra um SMO universal que abranja ambos os sexos, e até nem vejo nenhum problema de maior em que o cumprimento deste SMO coincida com a parte final dos 12 anos de escolaridade obrigatória. E também nada tenho contra qualquer outra modalidade de recrutamento que não inclua um SMO…
Sobre a operacionalização dos moldes em que tal poderá ser feito, deixo isso a cargo da articulação que pode ser feita entre os ministérios da Defesa, da Administração Interna, da Educação, e das Finanças.
Esclarecido este ponto, passo então ao cerne das minhas preocupações. Parece que na política, o que parece, às vezes até é. Porque o pensamento político tende a ser imediatista, básico, e mais focado na produção do sound byte, do que no conteúdo propriamente dito. Ou seja, à medida de quem o escuta, e que tem a ilusão do controlo das decisões, baseadas na informação a que lhes é permitido aceder. Na impossibilidade de se ter umas forças armadas constituídas por gente mais capaz (quem sabe, se pela baixíssima atratividade da carreira militar, ou pela reduzida taxa de natalidade registada em Portugal), o SMO parece ser uma espécie de “penso rápido” que permite estancar, a curto prazo, a sangria da força vital de defesa da Pátria. Uma vez mais, até aqui nada contra. Assim eles tivessem o material (já agora, com a devida manutenção, e as devidas munições). O que também não é o caso.
O problema surge quando gente que nunca experimentou os horrores da guerra (a maior parte nem cumpriu serviço militar) resolve começar a tomar decisões sobre o envio dos filhos e das filhas, dos netos e das netas dos outros, para as frentes de combate de guerras que não são nossas. Especialmente quando, contrariando a letra e o espírito da Lei Fundamental, até se admitiu a restauração da Censura (dizem que por ordem da Comissão Europeia), promovendo a difusão de pontos de vista que primam pela falta de isenção, pela descarada desinformação (mas parece que só os outros desinformam…), e quando não pelas mais grosseiras formas de xenofobia.
Ao contrário desta “gente”, eu não começo a salivar de forma pavloviana com a perspetiva de enviar a nossa (já de si muito escassa e preciosa) juventude para uma morte tão certa, quanto injustificada. Se por um lado até admito como natural a sua convocatória para a defesa das nossas gentes, do nosso território, e dos nossos interesses, não poderei nunca concordar com um SMO cujo propósito seja alimentar a besta de guerras que não são nossas com fresca carne para canhão. Quem achar que está do lado certo da História, que vá para lá, e que se cure dos seus males!
Não faz sentido que, havendo autóctones dessas paragens que se furtam ao que aqueles que dizem ter sido eleitos por eles decidiram (desertando, fugindo, subornando – e atenção, que eu nem os estou a censurar por isso), tenham de ser os nossos (e as nossas) jovens a morrer no seu lugar. Quando nem devia morrer ninguém! E muito menos por causa de concurso de “pilinhas”, em que quem as tem mais curtas, se recusa a admitir a tão inevitável (quanto previsível) derrota, arrastando com eles as já de si depauperadas finanças dos Estados que “fiquem ao lado” da Ucrânia, e forçando-os a contrair dívida que irá ser paga… pelos vossos filhos e filhas, pelos vossos netos e netas! Nada devemos a essa organização que se autointitula de “defensiva”, NATO (os Sérvios, Iraquianos e Líbios parecem não concordar), mas que já nos foi tão útil quando a União Indiana nos invadiu os territórios no subcontinente indiano. Ah, espera! Parece que nem foi tanto assim…
Eu até entendo que se permaneça nela, quanto mais não seja para reduzir as possibilidades de sermos atacados por algum dos nossos circunstanciais “aliados”. Mas deveríamos abster-nos de fomentar retóricas belicistas e contrárias aos nossos interesses, e caminhar progressivamente para uma neutralidade Suíça, que tão bem nos serviu na segunda guerra mundial.
Concomitantemente, e se temos mesmo de investir mais na nossa Defesa, deveríamos priorizar a nossa própria indústria militar, e apostar na produção massiva de munições (compatíveis com a utilização pelos equipamentos utilizados pelos nossos aliados), bem como desenvolver novas capacidades que revolucionaram o modo como se faz a guerra nos dias de hoje (drones marítimos, aéreos, ou qualquer outra que nos seja sugerida pelas nossas autoridades militares). Seja através de tecnologia desenvolvida pelos nossos investigadores, nas nossas unidades de investigação, ou através de engenharia reversa. Antes das eleições para o Parlamento Europeu, o povo português deve exigir que os partidos que se candidatam sejam muito claros sobre as suas intenções sobre o envio de forças portuguesas para a Ucrânia. E só então deveríamos dizer (através do voto) se ainda concordamos com a intenção de restaurar o SMO.
Paulo Fanha
Professor de Ciências Físico-químicas
Jogador/treinador/professor de xadrez