Foi noticiada a falta de Tamiflu nas farmácias e, noutro momento, que “esta estirpe da gripe A cede à medicação após três dias”. O fármaco em causa tem um historial problemático, que inclui a ocultação de dados e a tentativa de mantê-los confidenciais por parte da farmacêutica Roche. Quando esses dados foram finalmente facultados, uma revisão da Cochrane detectou graves falhas nos ensaios da empresa e não encontrou provas de que o Tamiflu afetasse as complicações ou a prevenção da gripe. Pedimos ao dr. Tiago Marques, medico infeciologista, a sua opinião.
A comunicação social nacional tem feito inúmeras referências à falta de antivirais nas farmácias, nomeadamente do Tamiflu, o que sugeria que o medicamento pudesse estar a fazer falta aos doentes com gripe.
Fonte: Vários órgãos de comunicação nacionais
Numa reportagem televisiva recente, um jornalista chega mesmo a afirmar:
“Em circunstâncias normais esta estirpe da gripe A cede à medicação após três dias (…)”
Mas qual é a evidência sobre medicamentos “contra” gripes? Será o Tamiflu eficaz?
A história do Tamiflu
A partir da década de 2000 que os governos têm gasto milhares de milhões de euros para armazenar dois medicamentos anti-gripais: o Tamiflu e o Relenza.
Aquando da designada “gripe suína” H1N1 (2009), os governos do Reino Unido e da Austrália pediram uma atualização rápida de uma revisão Cochrane existente sobre esses fármacos.
No entanto, as conclusões foram disputadas por um pediatra japonês que alegou que a evidência que sustentava a redução de complicações secundárias como pneumonia se baseou numa análise conjunta de dez ensaios financiados pelos fabricantes (oito dos quais nunca publicados).
Dados ocultados dos investigadores
E, de facto, quando os autores principais dos estudos foram confrontados com o pedido dos dados primários pela BMJ, que sustentavam as suas conclusões, responderam de forma surpreendente.
John Treanor, autor principal de um dos ensaios fundamentais, afirmou:
“Não efectuei uma análise independente dos dados primários, que não era exigida nem solicitada pelo JAMA na altura da apresentação, e não tenho acesso aos dados primários, que também nunca solicitei”.
Karl Nicholson, autor do outro ensaio principal “disse que não se lembrava de ter visto os dados primários. Disse que a análise estatística tinha sido efectuada pela Roche e que ele tinha analisado os dados resumidos.”
Também, Tom Jefferson, chefe da equipa de revisão da Cochrane, tentou obter esses dados, mas recebeu uma resposta semelhante.
Ou seja, os autores não tinham tido acesso aos dados primários e, portanto, esses dados estavam na posse da própria empresa detentora dos direitos de comercialização do fármaco.
Jefferson dirigiu-se então à equipa da Roche, mas só lhe foram oferecidos os dados sob a condição de um acordo de confidencialidade secreto, que se recusou a assinar.
Batalha para obter dados dos ensaios clínicos
Só depois de muita pressão e de uma batalha de quase quatro anos, foi possível divulgar os dados dos ensaios clínicos subjacentes aos dois medicamentos contra a gripe.
Em outubro de 2013, os revisores da Cochrane receberam finalmente Relatórios de Ensaios Clínicos completos de 107 estudos da EMA, da GSK e da Roche (cerca de 150.000 páginas). Esses dados constituíram a base para a última atualização da revisão da Cochrane, publicada em abril de 2014.
Conclusões da BMJ
Em fevereiro de 2019, a BMJ considerou como factos:
- A OMS estava a recomendar o Tamiflu, mas não tinha verificado os dados subjacentes;
- A EMA aprovou o Tamiflu, mas não examinou os dados subjacentes;
- O CDC estava a encorajar a utilização e a constituição de reservas de Tamiflu com base numa análise conjunta de 6 páginas de 10 ensaios clínicos financiados pelo fabricante, mas não tinha verificado os dados subjacentes;
- A promoção do CDC ocorreu apesar do facto de, desde 2000, a FDA, que tinha examinado os dados subjacentes, ter exigido que a Roche acrescentasse uma declaração à rotulagem do produto Tamiflu: “As infecções bacterianas graves podem começar com sintomas semelhantes aos da gripe ou podem coexistir ou ocorrer como complicações durante o curso da gripe. Não foi demonstrado que o TAMIFLU previne essas complicações”.
- A maioria dos ensaios de tratamento de Fase III da Roche (Tamiflu) não foram publicados uma década após a sua conclusão.
Revisão da Cochrane (com os dados primários)
Em 2014, na sua nova revisão, desta vez baseada nos 107 relatórios de estudos clínicos da Agência Europeia de Medicamentos (EMA), da GlaxoSmithKline e da Roche, são apontadas falhas que “colocaram a maioria dos estudos com zanamivir (Relenza) e metade dos estudos com oseltamivir (Tamiflu) em alto risco de viés de seleção” e condenada a adoção de “medidas inadequadas para proteger 11 estudos sobre o oseltamivir contra o viés de desempenho devido à apresentação não idêntica do placebo”.
Entre outras críticas, os revisores detetaram também “evidência de relato seletivo tanto nos estudos com o Relenza como com o Tamiflu”.
A partir desses dados reais, os revisores concluíram que não havia provas convincentes de que o Tamiflu afetasse as complicações da gripe (tratamento) ou as infecções por gripe (profilaxia).
Para além disso, levantaram algumas novas questões sobre o perfil de segurança do medicamento, concluindo que “a utilização de oseltamivir aumenta o risco de efeitos adversos, tais como náuseas, vómitos, efeitos psiquiátricos e eventos renais em adultos e vómitos em crianças”.
Posições das agências de Saúde
Inúmeras agências de Saúde não alteraram significativamente a suas posições sobre o fármaco. O CDC, por exemplo, tem salientado conclusões de estudos observacionais em detrimento dos RCTs (Ensaios Controlados Randomizados), que têm um nível de evidência superior e estão sujeitos a menor enviesamento.
A Cochrane contrapôs com o facto de os argumentos do CDC estarem “enfraquecidos pela sua citação seletiva de provas e pelo facto de nenhuma das suas organizações afirmar ter examinado de forma independente as provas mais completas dos relatórios de estudos clínicos”.
Afirmam também que:
“esta mudança de enfoque para longe dos dados de ensaios aleatórios aumentou nos últimos anos, uma vez que se tornou claro que a eficácia do oseltamivir é limitada – algo que a informação oficial de prescrição do oseltamivir (Tamiflu) aprovado pela FDA sempre deixou claro – e as provas de resultados clínicos importantes, como a redução da pneumonia e da morte, continuam por provar”.
Entrevista ao dr. Tiago Marques
Perguntámos também ao dr. Tiago Marques, medico infeciologista, a sua opinião sobre o medicamento e sobre a sua eficácia para o tratamento/prevenção da gripe.
The Blind Spot: Dr. Tiago Marques, temos assistido a referências pela comunicação social aos antigripais e à sua suposta escassez nas farmácias, nomeadamente, do Tamiflu. Qual a sua opinião sobre esse fármaco?
Dr. Tiago Marques: Em relação ao oseltamivir (Tamiflu), na população geral a evidência não aponta para que o uso deste fármaco, sobretudo depois das primeiras 36 horas mude seja o que for na evolução da gripe, conforme evidência da Cochrane.
No doente imunocomprometido, hematológico por exemplo, pode fazer diferença.
The Blind Spot: Nesses doentes imunocomprometidos, é possível que não o consigam obter por não estarem disponíveis nas farmácias, como as televisões noticiaram?
Dr. Tiago Marques: O Infarmed diz que não há falta, de qualquer forma podem sempre obter no hospital.
The Blind Spot: Tivemos igualmente a afirmação de um grande órgão de comunicação social de que a gripe é normalmente curada devido aos efeitos da medicação após três dias, isso é verdade?
Dr. Tiago Marques: A febre na gripe é suposto normalizar em 3 dias sendo a tosse mais persistente, até 15 ou mesmo 21 dias. A medicação não altera esta evolução.
The Blind Spot: E existem alguns possíveis efeitos adversos do medicamento?
Dr. Tiago Marques: Muito poucos, sobretudo a nível gastrointestinal. No Japão foi associado a casos raros de encefalopatia (foro psiquiátrico).
Fontes:
Response to Uyeki et al. | The BMJ
Aumento de casos de gripe A relacionado com perda de imunidade – SIC Notícias (sicnoticias.pt)
Ver também:
Conflitos de interesse em tempos de pandemia
Investigação Filipe Froes: Promoção de medicamentos- O exemplo do Remdesivir
Evidência Oculta | T1- Ep. 1 – “À conversa com o infeciologista Tiago Marques” (parte 1)
Long-Covid: Infetados sem alterações de marcadores biológicos