Os governos acham que somos parvos?

ByCristina Mestre

11 de Abril, 2024

Desde a proibição de livros e filmes na URSS, passando pela Grande Firewall na China e pela atual proibição de sites e limitação de opiniões nos países ocidentais, nenhum dos governos acha os cidadãos suficientemente capazes de procurar a verdade por si próprios.

Comecemos com um pouco de História: em 1948, a URSS comprou o filme americano ā€œAs Vinhas da Iraā€ para mostrar Ć  sua população todas ā€œas mazelas do capitalismoā€. Mas a exibição pĆŗblica do filme nos cinemas soviĆ©ticos foi quase imediatamente proibida sem se saber porquĆŖ. Suspeita-se que foi por o filme mostrar como os pobres agricultores americanos viviam um pouco melhor do que se imaginava.

Outros filmes estrangeiros proibidos na URSS incluem ā€œE Tudo o Vento Levouā€, ā€œO Padrinhoā€ e atĆ© a ā€œGuerra das Estrelasā€. Neste Ćŗltimo, os censores viram na ā€œforƧa negraā€ (dark force) uma alusĆ£o Ć  URSS. A censura soviĆ©tica justificava o carĆ”cter ā€œprejudicialā€ de determinada obra por ela ā€œdistorcer os factos históricosā€, ou ā€œcolocar figuras decadentes no lugar de personagens positivasā€.

O Estado chegava a proibir filmes produzidos no próprio paĆ­s: de 1926 a 1984, foi cancelada a exibição de 97 filmes de ficção de realizadores soviĆ©ticos. O mesmo se passava com livros, peƧas de teatro e atĆ© obras musicais nacionais. Embora estes factos sejam sobejamente conhecidos, Ć© importante recordĆ”-los para enquadrar a situação em que actualmente vivemos no ā€œMundo Livreā€.Ā 

Voltemos ao nosso sĆ©culo. Na China, o sistema de censura na Internet, conhecido como a Grande Firewall, existe desde 2000, quando o MinistĆ©rio da SeguranƧa PĆŗblica lanƧou o Projeto Golden Shield – um mecanismo gigante de censura e vigilĆ¢ncia destinado a restringir conteĆŗdo, identificar e localizar indivĆ­duos e fornecer acesso imediato a dados pessoais. Sites como o Gmail, Google, YouTube, Facebook, Instagram, Twitter, bem como todas as ediƧƵes da WikipĆ©dia, estĆ£o bloqueados na China. O mesmo acontece com o WhatsApp, Messenger, Telegram, Signal, Line ou Viber. Os cidadĆ£os chineses, que usam versƵes domĆ©sticas similares, podem ser presos por vender VPNs ou multados por simplesmente usĆ”-las. As informaƧƵes crĆ­ticas em relação ao governo sĆ£o consideradas ā€œantipatrióticasā€, vindas de ā€œforƧas anti-Chinaā€. Ɖ importante dizer que os jovens chineses, especialmente os que comeƧaram a faculdade depois de Xi Jinping assumir o poder, estĆ£o entre os que defendem e apoiam a Grande Firewall.

E nós, somos diferentes?

O mais triste disto tudo não é estes dois grandes países orientais limitarem claramente a liberdade de expressão e de pensamento: afinal todos os regimes autoritÔrios no mundo sempre o fizeram para manter o poder. Ou talvez esses povos gostem de viver assim. O mais triste é estarmos nós, no Ocidente dos direitos humanos, a trilhar o mesmo caminho. 

Na UniĆ£o Europeia, entrou em vigor este ano a Lei dos ServiƧos Digitais, anunciada como destinada a ā€œprotegerā€ os cidadĆ£os da ā€œdesinformaçãoā€. Conceitos como ā€œcontrolar as prĆ”ticas onlineā€, ā€œmoderar conteĆŗdosā€, ā€œdenunciar conteĆŗdos ilegaisā€ passaram a fazer parte do lĆ©xico dos nossos legisladores.Ā 

No CanadĆ”, Justin Trudeau estĆ” a tentar aprovar o projeto de lei C-63, que tornarĆ” ilegal ā€œexpressar ódio na Internetā€. O novo projeto de lei prevĆŖ multas e pena de prisĆ£o para ā€œcrimes de ódioā€, que podem ir atĆ© Ć  prisĆ£o perpĆ©tua. A lei tambĆ©m darĆ” aos juĆ­zes o poder de colocar um cidadĆ£o em prisĆ£o domiciliĆ”ria se temerem que ele possa cometer um crime de ódio no futuro. Os crĆ­ticos alertam que o projeto de lei draconiano representa um abuso de poder e pode sufocar a liberdade de expressĆ£o e discussƵes complexas, pois nĆ£o distingue entre manifestaƧƵes de ativismo polĆ­tico e ā€œdiscurso ofensivoā€. Muitas formas de expressĆ£o podem ser interpretadas como ā€œodiosasā€.Ā Ā 

ā€œComo algo saĆ­do de uma fantasia de terror de ficção cientĆ­fica, o projeto de lei permite ao governo condenar, multar e prender para o resto da vida pessoas que nĆ£o cometeram nenhum crime de expressĆ£o, mas que poderĆ£o fazĆŖ-lo no futuroā€, disse o apresentador Bob Metz no programa de rĆ”dio Just Right.

Na Escócia, entrou em vigor este mĆŖs uma lei similar (The Hate Crime and Public Order Bill), que cria um novo crime de ā€œincitamento ao ódioā€, com penas de atĆ© sete anos de prisĆ£o. Em Israel, o Parlamento aprovou uma lei que permite ao MinistĆ©rio das ComunicaƧƵes impedir as emissƵes e confiscar equipamento de televisƵes estrangeiras, quando as considere uma ameaƧa Ć  seguranƧa nacional.

Ucrânia, uma guerra de percepções

Após o inĆ­cio da guerra na UcrĆ¢nia, a UniĆ£o Europeia e os EUA bloquearam diversos meios de comunicação russos (RT, Channel 1, Sputnik). A UE criou um serviƧo especial para combater a chamada ā€œdesinformação russaā€. Bruxelas nĆ£o quer que os cidadĆ£os europeus tenham acesso Ć  informação do paĆ­s adversĆ”rio.Ā Ā 

Como sabemos, os lĆ­deres polĆ­ticosĀ de todos os grandes paĆ­ses utilizamĀ os mass media paraĀ tentarĀ inibirĀ aƧƵes contrĆ”riasĀ aosĀ seusĀ interesses e promover as suas próprias ideologias. AlĆ©m disso, utilizam as companhias deĀ ā€œbig dataā€Ā para recolher dados e fazerĀ avaliaƧƵes.

Assim sendo, esquecem-se os decisores europeus que a ā€œnossaā€ informação nos media tradicionais, longe de ser sempre verdadeira, Ć© igualmente produto da nossa ā€œcomunicação estratĆ©gicaā€.Ā 

Estamos ou nĆ£o em guerra com a RĆŗssia? A julgar pelos esforƧos no fornecimento de armas, pelos milhares de milhƵes de euros canalizados para Kiev, jĆ” estamos. Ora, se estamos em guerra, entĆ£o jĆ” somos todos alvo, no Ocidente, das ā€œnossasā€ campanhas de comunicação para preparar e modelar a opiniĆ£o pĆŗblica, ou seja, para ganhar ā€œos coraƧƵes e as mentesā€ das populaƧƵes.

Como os militares saberão melhor que eu, estas campanhas visam mudar as percepções. Sabemos que a percepção da população é um elemento fundamental para o sucesso de qualquer missão militar e que esta não é só uma guerra no sentido tradicional do termo, como também um conflito de interpretações.

Nenhum dos governos acha os cidadãos suficientemente capazes de procurar a verdade por si próprios. Na verdade, ninguém quer que encontremos a verdade.

JĆ” que, como cidadĆ£os, estamos a ser alvo de campanhas de comunicação quer da potĆŖncia hegemónica e seus aliados, quer das grandes potĆŖncias ascendentes, hĆ” que ter noção de que os apelos a limitar a ā€œdesinformaçãoā€ nĆ£o passam de tentativas de limitar a informação ā€œinconvenienteā€ vinda dos adversĆ”rios, sejam eles externos ou internos.Ā 

ā€œCombater a desinformaçãoā€ Ć© um subterfĆŗgio para obrigar os cidadĆ£os a aceitar apenas a ā€œnossaā€ informação – e aceitar só aquela que Ć© permitida pela chamada ā€œmoderação de conteĆŗdosā€, ou seja, pela censura.Ā 

E que tal ensinar os cidadĆ£os a pensar? Estimular o espĆ­rito crĆ­tico, a saber, distinguir informação verĆ­dica de informação manipulada? Estimular o uso de instrumentos para procurar a verdade neste caos informativo? E que tal nĆ£o taxar liminarmente uma caricatura, um meme, como ā€œfake newsā€ ou ā€œdiscurso de ódioā€, mas ensinar a distinguir o humor, o sarcasmo como algo permitido numa sociedade livre?Ā Ā 

Nos anos do Estalinismo, quem contasse qualquer anedota polĆ­tica podia ser acusado de ser ā€œinimigo do povoā€ e preso.Ā 

Hoje, no nosso ā€œmundo livreā€ estamos muito perto disso.Ā Ā Ā 

Cristina Mestre

Psicóloga e tradutora

Licenciada em Neuropsicologia pela Universidade de Moscovo (MSU), nos Ćŗltimos anos tem trabalhado principalmente como tradutora e editora em agĆŖncias de notĆ­cias do Leste da Europa.Ā