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SARS, Covid-19 e infeções respiratórias virais – uma comparação

As infeções respiratórias são seguramente um dos grandes motivos de consulta médica ou recurso a serviços de urgência, assim como também de internamento e inclusive mortalidade (estimam-se que em média morram 16 pessoas de pneumonia/ infeção respiratória por dia só em Portugal). Muitas delas são de origem viral, causadas por numerosos tipos de vírus dos quais se destacam os influenzas (gripe) e os coronavírus (e nas crianças e idosos o vírus sincicial respiratório).

Não são, portanto, causadas por qualquer mudança brusca de temperatura, exposição ao frio ou ao sol! E a maioria delas não requerem antibióticos, dados tantas vezes de forma abusiva e contribuindo para resistências que iremos pagar no futuro (já começámos a fazê-lo).

Estas infeções, ao contrário de outras infeções virais agudas (sarampo, varíola) ou latentes (varicela, mononucleose) caracterizam-se pela imunidade parcial fruto das frequentes mutações do vírus (deriva genética) que lhe permite reinfectar o hospedeiro várias vezes embora com a gravidade bastante limitada por processos imunológicos independentes de anticorpos.

Todas elas partilham com a Covid 19 o serem doenças contagiosas – é da experiência de todos nós que muitas vezes a gripe/ bronquite/ constipação se espalham rapidamente numa família ou num ambiente de trabalho.

A gripe ou influenza é uma patologia viral epidémica, sazonal, devida ao vírus do mesmo nome do qual existem diversos subtipos. Por exemplo, do vírus de 2009 era um H1N1, e para o qual existe uma vacina, embora uma vez que o agente é de fácil mutação, obrigue a reforços periódicos a fim de ir acompanhando a deriva genética do influenza (todos os anos, a composição da vacina da gripe é atualizada e modificada segundo normativos da OMS, a fim de acompanhar a evolução do vírus).

Os coronavírus endémicos, responsáveis por cerca de 20% das constipações comuns (as outras são devidas a outros vírus – rinovírus e adenovírus sobretudo) eram considerados patogénicos de menor importância face à influenza até 2003.

Desde novembro de 2002 verificou-se a emergência de uma pneumonia atípica na zona de Guangdong (China) da qual inicialmente se desconhecia a causa, com uma taxa de letalidade de cerca de 10%. Foi definida inicialmente por critérios clinico-epidemiológicos (estadia em zona endémica ou contacto de risco mais febre superior a 38,5ºC, mais descida de determinado tipo de glóbulos brancos no sangue – linfopenia mais pneumonia bilateral sem resposta a antibióticos) e mais tarde nomeada pela OMS com o nome de “severe acute respiratory syndrome “( SARS) – em Português – síndroma respiratório agudo grave .

Após uma corrida científica sem precedentes até então, o vírus responsável foi identificado em abril de 2003 e nomeado SARS – CoV (coronavírus associado à SARS), tendo sido posteriormente desenvolvidos um teste (PCR, no entanto não em uso corrente e doseamento de anticorpos) e um tratamento (corticoide em dose elevada, tendo sido também tentados, com resultados inconclusivos vários antivirais). O surto acabou por se limitar em junho do mesmo ano, tendo sido contabilizados mais de 8.000 casos com 800 mortos (o número terá certamente sido muito superior, uma vez que não existindo disponibilidade de teste PCR para SARS-CoV apenas eram diagnosticados os casos mais graves, o que inflacionou a perceção da gravidade da doença) . Já mais tarde foram identificados coronavírus do tipo SARS em morcegos e em gatos de algália naquela região pelo que se admite a transmissão dos animais ao homem.

Já em final de 2019 verificou-se a emergência em Wuhan de uma patologia tipo SARS, tendo sido identificado um novo coronavírus do mesmo grupo (SARS-CoV-2). Por receio de repercussões económicas do termo SARS, a OMS decidiu chamar a patologia de Covid-19 (de Coronavirus disease 2019), tendo o critério de diagnóstico escolhido sido a positividade do teste PCR para o agente viral. Isto obviamente faz com que a perceção do número de casos aumente, sendo a sua gravidade proporcionalmente menor (de facto, a taxa de letalidade quando se aplicam ao SARS-CoV-2 os critérios de 2003 parece ser quase idêntica).

As duas epidemias (SARS e Covid-19) têm em comum tratar-se da emergência de um novo vírus numa população “virgem” o que se traduz numa maior contagiosidade (porque todos são suscetíveis embora nunca por igual uma vez que todos carregamos as marcas imunológicas da exposição a outros vírus – até outros coronavírus – que poderão limitar a probabilidade e a gravidade da infeção. (De facto as populações “virgens “são muito raras – um bom exemplo de uma foram os ameríndios dizimados pela varíola trazida pelos conquistadores espanhóis).

À medida que a população deixa de ser virgem (pela vacinação e pela infeção continuada) a proporção de indivíduos com anticorpos para o vírus tende a ser cada vez maior e a gravidade e letalidade diminuem, assim como o risco de contágio – os vírus pandémicos tendem a tornar-se sazonais (foi assim por exemplo com o H1N1 de 2009 e com o H3N2 de 1968, ainda hoje os principais vírus sazonais da gripe).

Portanto, cada vez faz menos sentido a atuação baseada no número total de casos dados por rastreios de PCR, uma vez que este será sempre muito elevado (cada indivíduo tem em média 2 a 4 episódios de infeção respiratória por ano), devendo a avaliação epidemiológica ser feita a nível da gravidade destes – internamentos e sobretudo internamentos em cuidados intensivos motivados pela infeção (e não internamentos por traumatismos que coincidentemente têm PCR para SARS-CoV-2 positiva).

Manter inalterado o modelo de testagem maciça numa população imune pode também ser contraproducente para o funcionamento dos serviços de internamento geral sem grandes benefícios na prevenção de infeção grave (imaginem se todos fossem testados regularmente para herpes ou influenza e isolados em conformidade!) Continua a ser importante uma proteção individual e uma testagem, mas agora adaptada ao risco de doença grave (por exemplo – doentes em quimioterapia, com doença hematológica maligna-os quais têm muita dificuldade em responder à vacina, necessitam de cuidados/rastreios que a generalidade da população poderia dispensar). Será também importante, sobretudo neste subgrupo de doentes a introdução de fármacos antivirais ou imunoterapias específicas que permitam tratar a infeção diminuindo o risco de complicações.

Tiago Marques, Médico Infeciologista

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