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Ansiosos por uma nova ordem multipolar? Talvez devamos pensar melhor

Já se tornou praticamente mainstream falar da ascensão de múltiplos “pólos” no cenário global e do declínio do poder hegemónico dos EUA. Fala-se de um mundo multipolar em oposição a um mundo unipolar, dominado pelos Estados Unidos e seus aliados. O bloco BRICS do chamado Sul Global seria o contraponto ideal aos países ocidentais que têm dominado a economia, a política e o desenvolvimento globais até agora. É muito provável que o leitor concorde com estas afirmações, porque o número de artigos nesse sentido que inundam as redes sociais cresce a cada dia. 

Afirma-se que os países BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) superam o Ocidente em termos de população, recursos e começam a superá-los no que respeita à contribuição para o desenvolvimento global. A gigante China, com o seu vertiginoso desenvolvimento económico e a sua condição de superpotência em ascensão, seria a principal obreira do fim do Ocidente como o conhecemos. 

A linguagem da nova ordem mundial “multipolar” e “pós-ocidental” encontra múltiplos adeptos em países da Ásia, da África e da América Latina, onde a frustração com a ordem mundial liderada pelo Ocidente é grande. A desdolarização e o iminente colapso do sistema bancário americano são encarados como provas irrefutáveis de que todo o edifício ocidental está a ruir. 

A questão que se coloca é: isso é bom ou mau? 

A nossa noção de que todos os impérios têm um fim, de que ao longo da história umas potências substituem outras no domínio da ordem mundial, leva-nos a acreditar que estaremos em mais um ponto de mudança sem retorno – desencadeado pela pandemia e pela guerra – em que tudo mudará e uma Nova Ordem Mundial inevitavelmente nascerá. Mas qual será ela? Com muitos rejeitando a nova ordem globalizadora de Klaus Schwab, por que razão estamos tão entusiasmados com o mundo multipolar? Porque apoiamos os países que o preconizam? Tentemos pensar melhor. 

As potências orientais definem a multipolaridade como a liberdade perante as tentativas das elites ocidentais de estabelecerem os seus próprios valores da democracia e dos direitos humanos como valores universais. Usando a longa lista de crimes dos países ocidentais, estes não teriam o direito de falar de democracia. A China é um dos países em que a linguagem da “multipolaridade” e do “anti-imperialismo” encontra grande ressonância.

A nós, parece-nos que um conjunto de vários “pólos” será um sistema mais equilibrado, justo e eficaz do que um só pólo, que o mundo liderado por várias potências funcionando em conjunto proporcionará melhores resultados que o domínio de uma só. 

Será mesmo assim? 

Estamos a usar a “multipolaridade” sem ter a menor consciência de como, por esse mundo fora, líderes autoritários e fascistas usam esta mesma linguagem para alcançar os seus próprios objetivos.

Como escreveu a activista Kavita Krishnan no seu artigo “Multipolaridade, o Mantra do Autoritarismo”, “a multipolaridade tornou-se a pedra angular da linguagem compartilhada dos fascismos e autoritarismos globais. É um grito de guerra para déspotas, que serve para disfarçar a sua guerra contra a democracia como uma guerra contra o imperialismo. A implementação da multipolaridade para disfarçar e legitimar o despotismo é imensamente possibilitada pelo aplauso da esquerda em muitos países à multipolaridade como uma expressão bem-vinda da democratização anti-imperialista das relações internacionais”.

Diz ela que, por exemplo, entre a liderança supremacista na Índia há fortes ecos do discurso fascista e autoritário de um “mundo multipolar” – onde as potências civilizacionais se levantarão novamente para reafirmar sua antiga glória, e a hegemonia da democracia liberal dará lugar ao nacionalismo de direita. “Num mundo multipolar que desafia os EUA, a China pôde se erguer. Não se preocupa com o que o mundo pensa sobre o assunto. Está a perseguir o seu objetivo… regressando ao expansionismo dos seus imperadores do passado”, escreve a activista.

O mesmo acontece em outras potências orientais ascendentes. Na Europa, os partidos comunistas saúdam a ascensão de grandes potências não ocidentais, mesmo que sejam internamente fascistas ou autoritárias, porque acreditam que essas potências oferecem uma alternativa à unipolaridade dos EUA. 

Quando a esquerda assume o “dever” de apoiar os regimes “multipolares”, ela ignora e falha em seu dever real de apoiar as pessoas que lutam para sobreviver aos crimes desses regimes.

Vendo bem, não é de admirar que os comunistas defendam o autoritarismo, isso faz parte, como se costuma dizer, do seu “património genético”. O que é de admirar são todos os outros, incluindo muitos dos nossos intelectuais e militares. O autoritarismo oriental tem a tradição de mostrar aos visitantes as suas melhores vitrines e esconder os seus piores pecados.

Colonialismo interno e controlo das populações 

As potências orientais têm criado elas próprias políticas inspiradas nas últimas guerras fomentadas pelo Ocidente. Alguns países adeptos da multipolaridade estabelecem relações de domínio com as suas minorias étnicas, o chamado “colonialismo interno”. Procuram também restabelecer partes dos seus “impérios perdidos” ou das suas antigas áreas de influência. Tudo isso está a ser feito não por meio do soft power, mas pela via militar. 

Outra das características mais lastimáveis destas potências é o desenvolvimento rápido do sistema de “pontuação social” ou “crédito social” e o controlo rígido das populações, seja a liberdade de movimento, seja a liberdade de expressão ou de manifestação. É o chamado tecnofascismo, ou capitalismo de vigilância, que infelizmente também já está lentamente a alastrar no Ocidente.  

Este mundo multipolar que emerge, o desenvolvimento de novos capitalismos de Estado autoritários, não cria melhores condições para ser uma alternativa ao sistema unipolar, mas apenas preserva e até aumenta os piores atributos deste último.

Ainda não sabemos como será a Nova Ordem. É muito provável que seja dominada pela potência e respectivos aliados que demonstrarem ter mais força militar e económica.

Mas, até lá, o melhor que podemos fazer é não falar a linguagem dos tiranos. 

Cristina Mestre, psicóloga e tradutora

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