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Um futuro nublado no horizonte para o continente africano, apesar de promessas recentes em todos os fora internacionais.  Africa corre o risco de ficar refém das boas vontades, mas sofrer o desgaste das novas multinacionais do terror, como as empresas privadas militares, da fome e das migrações.

África é, provavelmente, o continente mais martirizado do século XXI. Enquanto os media nos entretêm com a guerra da Ucrânia e o conflito israelo-palestiniano, África agoniza lenta e silenciosamente, afogada em conflitos regionais, ataques terroristas, massacres e golpes de estado, fome, epidemias dominadas pelas private military companies (PMC) russas, com o Wagner Group em particular destaque.

Com o despertar dos movimentos de libertação africanos, a partir dos anos 60 do século XX, a paz nunca mais voltou ao continente. As potências coloniais europeias, ainda fragilizadas pela destruição da Segunda Guerra Mundial, tinham repartido África entre si a régua e esquadro nos séculos anteriores. Com os movimentos de libertação a surgirem um pouco por toda a parte, atabalhoaram processos de descolonização que não foram bons nem para os locais. Para os ocidentais, foi o descalabro, que nalguns casos se foi arrastando penosamente, como a pomposa estratégia francesa denominada Françafrique ou a Guerra Colonial portuguesa. Para outros, como a Bélgica, a Itália ou mesmo a Inglaterra, foi sair o mais rápido possível.

Em plena Guerra Fria, o abandono a que o mundo ocidental votou África foi o eldorado para a União Soviética, que patrocinou a maioria dos movimentos de libertação e substituiu os europeus na exploração dos africanos. Mudaram-se os tiranos, mas manteve-se a tirania.

Com o colapso da União Soviética, no início da década de 90, os apoios fraquejaram e, a pouco e pouco, as portas abriram-se para novos intervenientes. Com uma presença cada vez mais residual dos europeus e norte-americanos, foi a vez dos chineses avançarem para programas de apoio a países africanos. Baseados em contratos-programa, maioritariamente celebrados ao abrigo da Belt & Road Initiative, estes apoios são no fundo uma nova forma de exploração: destinam-se a financiar infraestruturas viárias, de saúde, de saneamento e outras, mas aos respetivos concursos apenas podem concorrer empresas chinesas, que trazem os seus próprios trabalhadores. O pagamento é efetuado em recursos naturais, sendo a respetiva cotação determinada pelos próprios chineses. Este modelo de financiamento foi posto em prática na maioria dos países apoiados.

No entanto, a partir de 2015 a realidade africana voltou a mudar. Com o colapso da União Soviética, inúmeros operacionais ligados às Spetsnaz (Forças de Operações Especiais da Rússia) e/ou aos Serviços Secretos (FSB/SVR), altamente treinados e tecnicamente muito eficientes, viram-se de repente no desemprego. De início, foram-se mantendo ocupados fazendo segurança pessoal aos mundos oligarcas russos, ou participando como mercenários em diversos conflitos regionais (Tchetchénia, Crimeia, Geórgia, Nagorno-Karabakh, outros). Mas rapidamente entenderam o potencial que o “mercado” africano, sedento dos seus serviços, lhes oferecia.

À cabeça destas PMC russas, o Grupo Wagner, de Dmitri Utkin e Yevgeny Prigozhin, liderou as operações, indo muito além da mera atividade mercenária clássica, à imagem do que o francês Bob Denard fazia nos anos 60 a 90 do século XX. O portfolio da Wagner é muito mais abrangente e variado, incluindo segurança VIP, treino e operações militares, informações e estratégia militar e política, desinformação, venda de equipamento militar, comunicação social e, naturalmente, exploração de recursos naturais (ouro, diamantes, petróleo, gás, urânio, metais raros, madeiras e, ao pouco que se sabe, até tráfico humano de migrantes). Apesar do acidente de aviação que matou a cúpula da Wagner, já em agosto deste ano, estima-se que esta PMC mantenha toda a sua operacionalidade em África, como maior ligação à nomenklatura russa e liderada muito provavelmente pelo filho de Yevgeny Prigozhin, Pavel.

A presença do Grupo Wagner em África, América do Sul e Médio Oriente era, em junho de 2023, a seguinte (Pereira & Grant, 2023):

Mas o grande atrativo de África para todas as grandes potências, coloniais ou neo-coloniais, ao longo dos tempos, é disponibilidade e diversidade dos seus recursos naturais. Desde há muito conhecidos, a Revolução Industrial levou países como Inglaterra, França, Bélgica, Holanda e Alemanha, a partir do século XIX, a explorar matérias-primas, especialmente minérios, como ferro, cobre, chumbo, e produtos agrícolas, como algodão e borracha, todos essenciais para a produção industrial. Data desta altura o “Mapa Cor de Rosa”, um produto da diplomacia portuguesa aceite por Inglaterra, que incluía Angola, Zâmbia, Zimbabwe, Malawi e Moçambique. Data também desta altura o arranque da colonização francesa, que incluiu o Magreb, os países das regiões do Sahara e Sub-Sahariana, até ao Golfo da Guiné, por um lado, e ao Índico, por outro (Comores). Na ligação entre o Médio Oriente e o Cabo da Boa Esperança, com interesses na região do Golfo da Guiné e da costa do índico e com epicentro no Egipto e na África do Sul, localizou-se a colonização britânica. A Bélgica centrou-se no Congo, a Itália nas regiões próximas dos mares Mediterrâneo e Vermelho, a Alemanha no sudoeste africano, todos eles com os mesmos objetivos.

Nos nossos dias, a exploração dos recursos naturais do continente africanos reparte-se na sua grande maioria por 4 grandes potências: China, Rússia, Austrália e Canadá. Nas duas primeiras, trata-se de uma estratégia de Estado, com suporte governamental e diplomático evidente. Tanto a Austrália como o Canadá são países com tradição mineira, que operam em África sobretudo através da iniciativa privada, em joint-venture com empresas e governos locais. A Austrália, por exemplo, tem presentemente mais de 300 empresas mineiras a operar neste continente.

A Rússia, em especial, tem dado passos importantes nos últimos tempos, através de uma diplomacia mais musculada, de intervenção direta na governação dos países, com frequente recurso à ação militar. A este respeito, a Cimeira Russo-Africana ocorrida em São Petersburgo em julho passado, que reuniu Putin com mais de 40 chefes de estado africanos, foi um passo importante na geoestratégia russa para o continente africano. Em primeiro lugar, como os russos tanto apreciam, foram estabelecidos acordos militares com todos estes países, abrindo ainda mais a porta à influência russa nas suas forças armadas, diretamente ou através das várias PMC que controla (para além do Grupo Wagner, são conhecidas a Redut, Convoy, Fakel, Potok, RSB Group, St. Andrew’s Cross e Tsarskie Volki, entre outras), com a possibilidade de participação em exercícios militares em território russo para se familiarizarem com armamentos de nova geração. Depois, a Rússia comprometeu-se a doar cerca de 50 milhões de toneladas de cereais aos países africanos mais pobres (Burkina Faso, Zimbábue, Mali, Somália, República Centro-Africana e Eritreia). Por fim, como cereja em cima do bolo, a Rússia decidiu perdoar cerca de 23 biliões de dólares de dívida histórica a um conjunto de países africanos, presentes na cimeira.

Como é natural, tudo isto será pago com elevados benefícios para os interesses russos em África, tanto mais que a Rússia disponibilizou igualmente um plafond adicional de 90 milhões de dólares para apoiar o AfCFTA (African Continental Free Trade Area), um projeto de mercado continental para o continente africano, desenhado para um mundo multipolar. O interesse e posição da Rússia em África crescem e consolidam-se dia após dia, sem que isto signifique melhor saúde, qualidade de vida ou segurança para os africanos. De notar também que, desde 2021, sete países africanos foram alvo de diversos golpes de estado (Mali, Guiné, Sudão, Burkina Faso, Níger e Gabão), países estes que se encontram maioritariamente em áreas conhecidas pela presença do Grupo Wagner.

Face a este cenário, o que têm feito os países ocidentais? A França, sob a presidência de Macron, tem vindo gradualmente a abandonar a estratégia Françafrique, retirando gradualmente dos países onde tradicionalmente estava presente, para semanas ou meses depois entrar o Grupo Wagner em sua substituição. Mas pior que isto, os franceses têm exercido um lobby poderoso e persistente no sentido de que também as missões da União Europeia e das Nações Unidas abandonem o continente africano. Quanto aos Estados Unidos, a sua ação em África resume-se a ações pontuais, algumas bases militares (nomeadamente na região do Corno de áfrica), apoio diplomático a diversos países (cada vez menos, atendendo à progressão que tanto a China como a Rússia têm vindo a manifestar) e apoio económico enquadrado na MCC (Millennium Challenge Corporation, uma espécie de Belt & Road Initiative, lançada em 2004 pelo congresso americano). No que respeita à Inglaterra, para lá do Rwanda, pouco mais influência possui atualmente em África, agindo sobretudo a reboque dos Estados Unidos, numa geoestratégia transnacional a que os analistas chamam AUKUS.

Em conclusão, o horizonte afigura-se nublado para o continente africano. Até 2050 a população africana deverá crescer mais de 200% e a Nigéria deverá a ser o terceiro país mais populoso do mundo, a seguir à Índia e à China. A exploração dos recursos naturais deverá continuar a ser maioritariamente feita por estrangeiros, assente em negociações opacas e governos corruptos. A dinâmica de armamento deverá manter-se, assim como os ataques terroristas, promovidos por correntes ideológicas, separatistas ou por interesses económicos. As migrações não deverão abrandar e a Europa deverá manter-se como destino de eleição. Um quadro tão negro como a pele de muitos dos africanos.

José Alberto Pereira

PhD, Wagner Watch Project, Eurodefense Portugal

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