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O Rei das Migalhas

Para manter o anonimato, vamos chamar-lhe Rui e tratá-lo por R.

Como muito boa gente, R. aproveita o limbo entre o Natal e a Passagem de Ano para fins retrospectivos. Alguns de nós misturam o exercício com a introspecção, em jeito de de amálgama que nem sempre distingue o campo da acção e o intelectual.

A R. não ocorre semelhante separação. Aparentemente, o ano que agora finda correu de feição. A euforia quase que o cega, filtrando os chamados aspetos positivos, a saber a promoção na empresa, as viagens e os jantares a que jamais se pensou permitir e a crescente solidez na relação com a sua companheira que talvez se torne esposa e a quem prometeu (e a algum custo cumpriu) fieldade; os feitos, conforme anota R. com um semi-sorriso a rasgar o semblante, também são constituídos das asneiras de que um tipo se abstém.

R. e a companheira comprarão casa no vindouro ano. Não só despacharam a papelada, como estão prestes a assinar a escritura. Um luxo nos bizarros dias de hoje, em que a habitação é menos acessível que uma semana nas Ilhas Gregas.

R. conseguiu o empréstimo (ou aquela fracção que lhe faltava para passar à frente na fila) com a recente subida de salário. Proporcional à promoção na empresa? perguntará o astuto leitor. Não. R. fora aumentado antes de mudar de funções no seu aniversário de empregado, pelo que não só recebeu menos para um cargo com responsabilidades acrescidas, como a compensação se quedou por uma palmadinha nas costas e um ou outro “obrigado” por desempenhar as tarefas do seu posto enquanto procuravam um substituto(a).

Importa sobremaneira acrescentar (a). Não se deve assumir o género da pessoa. Nem quando o nome do indivíduo for anunciado. O género é revelado quando a pessoa se auto-apresentar. R. não vai muito à bola com estas coisas, contudo assobia para o lado.

A companheira agradece o silêncio estratégico. R. ganha agora mais que ela e sente-se contente por se tornar o que em inglês se intitula de “bread maker”, expressão menos sexista que “aquele que veste as calças”. Ao casal agrada a ideia de que o homem traga mais massa para a mesa. Coincidência ou não, a coisa refletiu-se no vale dos lençóis durante uma semana, ou talvez duas.

Obviamente, no universo online e em público, R. e a companheira manifestam-se fervorosamente a favor da igualdade salarial. Basta ver a atividade dos dois no LinkedIn, repleta de posts pelo empoderamento das mulheres e likes às frases ocas de AOC; por quem R. tem uma secreta tara.

O tal do aumento ficou, no entanto, aquém da inflacção. O casal faz vista grossa à discrepância, ciente (ou devo dizer, aliviado) de que não conhecem ninguém que tenha escapado aos novos custos de vida. “Faz parte”, dirão com a resignação da ratazana que continuar a contentar-se por vencer e voltar a vencer a infindável corrida (ou correria) do dia a dia.

O orçamento nem foi escasso. Deu para jantar fora montes de vezes em restaurantes gourmet e ir de férias às outrora homéricas idílicas ilhas gregas. Enquanto, ou em paralelo, pouparam para dar de entrada na casa.

Em breve, sairão porta fora da capoeira do arrendamento e cumprimentar as galinholas magricelas do andar de cima, de baixo e do lado deixará de fazer parte do quotidiano. R. imagina-se a abrir as asas e caminhar como um pavão-que-não-voa na direcção do novo condomínio.

Passar de inquilino a pseudo-proprietário e assumir a tempo inteiro o posto de “júnior manager”, juntamente com a conjunto de jantas a dar para as requintadas e as “vacanças” no Egeu, apenas o atestam como Rei das Migalhas. Aos olhos dos primos – a quem chama de “aqueles cromos” – parece o Rei do Mundo. Porém, no seu íntimo, R. reconhece-se no ágil galo que, entre os tais galináceos, mais logrou encher o papo.

Apaziguemos a mágoa de R. Nem todas as criaturas humanas merecem uma épica missão, embora os Instas queiram vender a ideia de que ter um dom equivale à frivolidade de ter um cão. R. deve-se regozijar pelos passos em frente dentro da agridoce frivolidade que é a sua vida.

Ou talvez R. sofra de insolúvel insatisfação. Não há fatia de bolo que, uma vez digerida, não lhe saiba a migalhas. Ou a fava.

Desprovido de verdadeiras alternativas, R. continuará a coroar-se no consumismo. Um desconsolo, devidamente disfarçado com a opaca cor do dinheiro.

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