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Editorial – Legislativas 2024: As eleições sobre “nada”

Num dos episódios de Seinfield, uma das séries mais míticas, a personagem George Costanza, amigo de Jerry Seinfield, tentava a vender à cadeia de televisão NBC uma série sobre “nada”.

Mas, se o George o idealizou na ficção, alguns dos nossos candidatos e todos os grandes média parecem estar a tentar concretizá-lo na realidade. Ou seja, conseguir fazer com que a campanha política seja sobre nada ou, pelo menos, sobre muito pouca coisa relevante para o cidadão comum.

A grande maioria do tempo foi passado a discutirem-se táticas e estratégias para aliciar o eleitorado, a falar sobre quem passa a melhor imagem ou quem se terá saído melhor no leilão das promessas. Substância, quase zero.

Os debates

Nos debates, além do enfoque nas táticas e nas alianças pós-eleitorais, lançaram-se alguns temas relevantes. Mas, quando algum dos participantes saía do guião, foi visível a irritação do moderador- How dare you!. Nesses momentos, alguns até parecem jornalistas de verdade, tal é a aparente vontade de escrutinar o que foi dito.

Mas, ao invés de deixarem o candidato defender a infame ideia, parecem querer impor rapidamente a “normalidade” (alguns dirão o politicamente correto), questionando em tom paternalista e normalmente chamando a atenção para o tempo (in)disponível.

Mas o melhor vem depois. Por todos os canais, dezenas e dezenas de comentadores, comentam, analisam e pontuam os candidatos. Num exercício notável conseguiram fazê-lo, na maior parte do tempo, sem expressarem uma ideia sofisticada ou uma visão sobre uma política em concreto. Muito pouco para além do que não sejam tricas, táticas e percepções sobre o que cairá bem ou mal no eleitorado.

E não é porque muitos não tenham afiliações, preferências ou dependências partidárias. É sabido que sim e as algumas das pontuações (autenticas “goleadas”) só o confirmam.

A direita e a esquerda

Outra forma de se evitar discutir ideias em concreto é recorrer à catalogação dos partidos. E a forma mais simples e, na minha opinião, mais reducionista de o fazer é colocando-os na “direita” e na “esquerda”.

Mesmo os que se afirmavam posicionar no centro ou noutros eixos, como a IL ou o PAN, parecem já se ter rendido à imposição dessa preguiça mental e reducionismo democrático. No fundo, numa campanha que se quer sobre nada, todas as tentativas de complicar e criar nuances não são bem-vindas, pois podem obrigar a que se discuta alguma coisa de verdade.

Tornar a política numa espécie de Benfica-Sporting é um ótimo instrumento para tribalizar e dividir as pessoas, ao mesmo tempo que as inibe de pensar, avaliar e decidir de acordo com a razão e não pelo instinto ancestral de pertença a um determinado grupo.

Depois ainda temos a “direita não democrática”, designação de comentadores e políticos para o que será, ao que tudo indica, o terceiro maior partido nacional. Independentemente, de se gostar ou não, é uma classificação no mínimo estranha visto ser um partido que se candidata a eleições livres e não manifestou qualquer intenção, que se saiba, de terminar com o processo democrático. Além disso, não são conhecidas posições favoráveis a ditaduras, o que não se pode dizer de outros partidos em disputa.

É curioso relembrar que nos tempos da cortina de ferro, a Alemanha comunista era designada de RDA, República Democrática Alemã, e que essa retórica também foi por muitos anos usada pelo nosso partido comunista para separar os democratas (a esquerda, nomeadamente, eles próprios) dos “não democratas” (os reacionários de direita).

Neste caso, esperemos que isso não tenha outros sentidos e que apenas seja mais uma arma de doutrinação para que as pessoas distingam quais os partidos “aceitáveis” dos “excomungados”. Como é trabalhoso apontar falhas e perigos em algumas das suas propostas (que na minha opinião, existem, tal como nas da maioria dos outros partidos) é preferível classificá-los de “não democratas” e fica o caso arrumado.

Temas proibidos

Mas claro, se alguns temas importantes são permitidos, ainda que de forma geralmente inconsequente, outros são proibidos ou, pelo menos, fortemente condicionados.

E há inúmeros. Por exemplo: a política energética nacional, que garante grandes rendas a privados à custa dos consumidores; a elevadíssima e injustificada mortalidade em Portugal nos últimos anos; as alterações propostas ao Regulamento de Saúde da OMS (inclusive pelos nossos representantes) que, entre outras coisas graves, eliminam a referência ao respeito pelos direitos humanos; as políticas defendidas pela Comissão Europeia relativas à agricultura; o desrespeito pela constituição durante a crise covid; a enorme degradação da qualidade do ensino em Portugal, demonstrada por avaliações independentes; as cadeiras giratórias entre governantes e grandes corporações nacionais e internacionais; entre muitos, muitos outros.

As reações às declarações do candidato da AD, ex presidente da CAP, que salientou as “falsas razões climáticas” por detrás de muitas decisões políticas foi uma amostra do que acontece a quem ousar tocar num dos “temas proibidos”.

Apesar de a pessoa em causa perceber provavelmente mais de ambiente e de agricultura do que todos os que o criticaram juntos, foi imediatamente catalogado de troglodita, negacionista, entre outros mimos e, claro, alvo dos verificadores de factos.

Tudo como é óbvio, com o mínimo de argumentos racionais ou dados que desmentissem a sugestão do candidato. Isso já seria falar de alguma coisa em concreto e, como vimos, não é essa a ideia.

Felizmente, que um número crescente de cidadãos questiona as incoerências, manipulações e tentativa de nos entreter com “não assuntos”.

Em casa, na rua, no café, em podcasts, em debates organizados ou nas redes socias debateram-se temas importantes. Estas última, são muito atacadas por se apresentarem como alternativa e ajudarem a desmarcar com “factos” algumas das narrativas dos grandes média. E é verdade que apresentam alguns riscos e que nelas circulam várias notícias enganosas oriundas de fontes alternativas e que exploram a descrença nos média tradicionais e dos poderes que os controlam. No entanto, continuam a ser a mais importante fonte de “informação proibida”, que é verdadeira, e essencial para os cidadãos se manterem minimamente informados e imunes à propaganda oficial.

Muitos já não se deixam entrincheirar nas tribos em que nos querem colocar, nem tão pouco assustam com as constantes emergências, que a tudo obrigam os cidadãos, desde restrições de liberdades a mais impostos, ao mesmo tempo que garantem rendas, mais ou menos, garantidas para empresas “amigas” do regime ou para grandes corporações internacionais.

Temos todos de lutar para uma democracia em que tudo pode ser discutido e escrutinado em profundidade. Temos todos de lutar contra os falsos consensos e as verdades incontestáveis, que nos querem impor sem qualquer fundamentação.

Se não queremos ser uma ditadura de verdade, temos de parar de ter uma democracia a fingir.

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