Ao longo de um ano e meio, vÔrias vozes se têm atrevido a dizer que as medidas tomadas em consequência da Pandemia têm posto em causa regras bÔsicas do Estado de Direito em Portugal.
Sempre que assim Ć© insuflam-se uns, por um lado, acicatam-se outros, por outro, porque āa vida estĆ” acima de tudoā ā dizem, e hĆ” que protegĆŖ-la.
Em nome da vida e da saĆŗde tudo o que eu julgava nĆ£o ser possĆvel num Estado de Direito jĆ” aconteceu.
Dissessem-me hĆ” 20 anos, quando me sentava nos anfiteatros da Faculdade de Direito de Lisboa, que ia assistir a um estado de emergĆŖncia contĆnuo de 1 ano, quando Constituição da RepĆŗblica o prevĆŖ de 15 dias, no mĆ”ximoā¦
Dissessem-me que ainda ia ver a minha liberdade coartada inĆŗmeras vezes por ResoluƧƵes de Conselho de Ministros, quando a Constituição determina regimes formais e orgĆ¢nicos muito excecionais para limitação dos Direitos, Liberdades e Garantiasā¦
Dissessem-me que iam criar uma lei da censura, em frontal oposição ao Direito de Liberdade de ExpressĆ£o e que lhe iam chamar um nome bonito, a propósito da Era Digitalā¦
Dissessem-me que iam tomar todas estas medidas sem nunca haver lugar a debate, discussĆ£o pĆŗblica, liberdade de pensamento ou de ideiasā¦
Dissessem-me que iam existir cidadĆ£os de primeira e de segunda, os certificados e nĆ£o certificados, os que tĆŖm acesso livre a todo o lado e os que nĆ£o podem aceder a certos sĆtios e a certas horasā¦
Dissessem-me ainda que alvitrariam alterar a Constituição de molde a que alguĆ©m pudesse ser privado da sua liberdade sem decisĆ£o judicial prĆ©viaā¦
Dissessem-me tudo isto hĆ” 20 anos e eu teria fugido!! Ou simplesmente voltado as costas aos ācalhamaƧosā, ao Prof. Jorge Miranda e aos seus VI Tomos de Direito Constitucional e teria feito outra vida, alheada do Direito, sem o pensar!
Como nĆ£o foi assim, continuam a correr-me no sangue coisas como āDireitos Fundamentaisā, āSeparação de Poderesā, āPrincĆpio da Legalidadeā, āDemocracia Representativaā e outras ideias de jurista ligadas ao ādever-serā. Como operadora de Direito confessei-me sempre chocada quando, desde o inĆcio, se apartou o Direito desta discussĆ£o social.
Pouco se admitiu aos advogados, jurisconsultos e atĆ© juĆzes que ergueram as suas vozes contra o que estava a ser feito. Pouco tempo de antena lhes foi dado.
E a nós das leis, que por natureza gostamos do discernimento lógico-formal e do debate, quando não nos dão voz é porque algo vai mal. à assim que diagnosticamos a doença (social); pela ausência de voz, de participação, de contraditório e de discussão pública.
As aƧƵes judiciais comeƧaram aqui e ali a serem intentadas e os pedidos de Habeas Corpus multiplicaram-se quando chegaram a conhecimento pĆŗblico, livres de formalismos e atravĆ©s de redes sociais. Pelas decisƵes dos Tribunais que os declaravam procedentes Ćamos confirmando o que jĆ” sabĆamos: Que a Lei Fundamental, pilar da nossa Democracia, estava a ser esventrada.
SentenƧa após sentenƧa foram sendo declaradas inconstitucionais inĆŗmeras normas COVID produzidas pelo poder executivo (Governo), no exercĆcio da sua função administrativa, nomeadamente aquela que conferia poderes ao Delegado de SaĆŗde/SaĆŗde24 para determinar o isolamento profilĆ”tico dos cidadĆ£os.
Apesar disso, o Estado continuou. Entre tantos outros atropelos, os delegados de saĆŗde continuaram a emitir decisƵes de isolamento diariamente, como se nada fosse. Como se juridicamente nada se passasse. Ā O Estado mantĆ©m-se ajurĆdico e sem regras que o limitem, mas o povo estĆ” cada vez mais esmagado por restriƧƵes e limitaƧƵes. E mantĆ©m-se obediente.
A sociedade estĆ” preocupada em sobreviver Ć maleita provocada pelo bicho, eu estou preocupada com o que sobrevem da (des)ordem social que experimentamos.
A doenƧa pode ser assustadora, mas o que se avizinha tambƩm.
Na semana passada, como as medidas tomadas em sede de gestĆ£o da pandemia nĆ£o se conformam com a Constituição, āarranjaramā maneira de conformar a Constituição Ć s medidas, numa espĆ©cie de encaixe forƧado de peƧas de um puzzle que nĆ£o bate certo.
PropĆ“s o PSD uma revisĆ£o constitucional que permita ā qual cereja no topo do bolo ā que as pessoas possam ser privadas da sua liberdade sem que um tribunal o decrete!
Ou seja, como o poder judicial se tem pronunciado desfavorĆ”vel Ć s medidas de confinamento decretadas ao longo da pandemia (entre outras coisas), vem o poder polĆtico propor que se altere a Constituição.
Com isto, evita-se a invocação da inconstitucionalidade da norma, silencia-se os juĆzes e passa a ser legal internar qualquer cidadĆ£o sem que ele tenha forma de reagir contra.
Assistindo a isto, vĆ”rias perguntas me brandem o espĆrito:
Ć isto mesmo que queremos? Vivermos āacorrentadosā para sempre?
Quem garante os nossos direitos mais essenciais e elementares, se não forem os tribunais, a quem incumbe assegurar os direitos e interesses dos cidadãos?
Quem nos ajudarÔ quando nos diagnosticarem uma doença (agora que os assintomÔticos também são tratados como doentes !!!!!) e nos levarem, sem apelo nem agravo, para onde bem lhes aprouver?
Quem te garante que não te acontece a ti?
Em nome da saĆŗde, mata-se agora a democracia.
O caminho é sinuoso e estamos em marcha-atrÔs⦠SerÔ um retrocesso democrÔtico colossal, capaz de envergonhar quem lutou hÔ menos de 50 anos pela nossa Liberdade. SerÔ um perigoso caminho, sem retorno.
à tempo de sairmos do pânico, sob pena de cometermos erros graves.
Cada um de nós precisa de fazer um caminho interno e conscientemente empoderar-se.
NĆ£o precisamos de uma figura patriarcal (Estado), que nos controle todos os passos para nos portarmos bem!
Ā A soberania Ć© de todos e de cada um.
Enquanto formos soberanos, a vontade dos nossos governantes é a nossa, não é outra!
āA democracia caracteriza-se pela participação dos destinatĆ”rios das normas jurĆdicas, dos governados, na formação da vontade estadual, pela autodeterminação dos governados; pela liberdade.ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Ā Kelsen
Maura Fonseca
Jurista
16.07.21