Carta dos Direitos Humanos na Era Digital: uma porta aberta para adequar a verdade Ć  medida dos grandes interesses

Foi publicada, a 17 de maio de 2021, a Lei n.º 27/2021 que aprova a Carta dos Direitos Humanos na Era Digital. Este documento prevê um conjunto de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos no ciberespaço. Entre outros, estÔ o direito ao esquecimento (apagamento de informações pessoais), o direito à proteção contra a geolocalização abusiva, o direito ao desenvolvimento de competências digitais ou ainda o direito de reunião, manifestação, associação e participação em ambiente digital[i].

Todavia, hĆ” um outro direito anunciado que nos deve levar Ć  reflexĆ£o: Ć© o direito de apresentar queixa Ć  Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) em casos de desinformação. Mas nĆ£o Ć© este o direito, em si mesmo, que nos intriga. Ɖ antes a terminologia ā€œcasos de desinformaçãoā€. A questĆ£o Ć©: quem Ć© que determina o que Ć© ou nĆ£o desinformação? De acordo com esta lei, cabe ā€œao Estado assegurar o cumprimento, em Portugal, do Plano Europeu de Ação contra a Desinformação de modo a proteger a sociedade contra pessoas que produzam, reproduzam e difundam narrativas consideradas de desinformaçãoā€[ii].

Para problematizar o que estĆ” aqui em causa, faƧamos um pequeno exercĆ­cio de lógica em torno de um processo recente. Tenhamos em consideração o caso dos testes PCR ao longo de todo o perĆ­odo pandĆ©mico. Logo no inĆ­cio da pandemia, a 29 de marƧo de 2020, a OMS sugeriu, atravĆ©s do documento ā€œModes of transmission of virus causing COVID-19: implications for infection prevention and control (IPC) precaution recommendationsā€, o uso de testes PCR para deteção do Covid-19. A recomendação inicial era a de utilização de amostras com carga viral e valores de Ā«CtĀ» (Cycle threshold) na ordem dos 50Ct. PorĆ©m, a 9 de julho de 2020, a mesma OMS atualizou esse documento, escrevendo que nos testes PCR ā€œThe detection of viral RNA does not necessarily mean that a person is infectious and able to transmit the virus to another personā€ (OMS, 2020, 9 de julho, §21). Assim, para maior precisĆ£o, a OMS sugeria que as colheitas baixassem para 25Ct[iii].

De acordo com esta retificação, o governo portuguĆŖs, atravĆ©s de uma nova lei (nr.Āŗ 331/2021), de 17 de fevereiro de 2021, portanto sete meses depois da retificação feita pela OMS, veio legislar para que a coordenação nacional da vigilĆ¢ncia laboratorial genĆ©tica e antigĆ©nica do vĆ­rus SARS-CoV-2 passasse a usar amostras com valores de Ct menores que 25, ā€œde forma a maximizar o sucesso da sequenciação genómicaā€ – sublinhando assim as indicaƧƵes da OMS. Quer isto dizer que em Portugal, com os testes PCR na ordem dos 40-50 Ct, a fiabilidade na deteção do Covid-19 seria muito baixa[iv]. Por outras palavras, podemos referir que em Portugal estivemos, desde o inĆ­cio dos testes PCR atĆ© pelo menos ao dia 18 de fevereiro de 2021 (quase um ano), com uma estratĆ©gia desajustada na deteção do Covid-19, e que teremos passado cerca de sete meses sem cumprir as recomendaƧƵes da OMS. NĆ£o serĆ” este atraso, tambĆ©m, desinformação? NĆ£o serĆ” aqui o Governo o responsĆ”vel pelo atraso no ajuste da calibração dos testes PCR?Ā 

Aplicando agora os princĆ­pios da Lei n.Āŗ 27/2021 que afirma que cabe ao Estado assegurar o cumprimento do Plano Europeu de Ação contra a Desinformação, de modo a ā€œproteger a sociedadeā€ contra quem produza, reproduza e difunda narrativas consideradas de desinformação, perguntemos: quem Ć© que nos vai proteger diante de uma situação em que durante vĆ”rios meses os resultados, anunciados diariamente, de ā€œinfetadosā€ eā€ mortesā€ por Covid-19 foram, Ć  luz das diretivas da OMS, feitos sobre informaƧƵes desatualizadas? E estando desatualizadas, gerando desinformação, quem Ć© que se vai responsabilizar pelas leis criadas tendo por base estes pressupostos desajustados ao longo do tempo? Quem Ć© que vai fiscalizar este ā€œfiscalā€, que Ć© o Estado, da sua própria desinformação? Quem Ć© que verifica a verdade destes que dizem ou juram defender a verdade, mas que a adequam aos seus objetivos? E de que verdade Ć© que estamos a falar? Da verdade cientĆ­fica? Que dificilmente obtĆ©m consenso precisamente porque o seu fundamento Ć© ā€œa verdade atĆ© prova em contrĆ”rioā€, em permanente construção? Poderemos vir a punir um sujeito que hoje anuncia uma suposta ā€œdesinformaçãoā€ e que amanhĆ£ essa mesma desinformação possa virar ā€œverdadeā€? NĆ£o estaremos a confundir regulação de comportamentos e de crimes em ambiente digital (como ofensas verbais, ameaƧas, ciberbullying, etc.) com ā€œmĆ”quinas de verdades contingentesā€ que se geram no princĆ­pio da liberdade opinativa? NĆ£o estaremos aqui a erguer o impĆ©rio da verdade como contingĆŖncia, quer dizer, uma verdade de acordo com adequaƧƵes dos entendimentos Ć  coisa vivida ou mesmo de acordo com as adequaƧƵes das pretensƵes e dos objetivos particulares, de determinados grupos ou atĆ© Governos, Ć  coisa vivida?

A este respeito, pensemos na notĆ­cia ā€œFacebook deixa de proibir notĆ­cias sobre origem do Covid, mas mantĆ©m censura a outros dados que considere falsosā€, presente neste jornal[v]. De acordo com o The Blind Spot, perante os novos indĆ­cios que associam a origem da Covid-19 a um acidente de laboratório em Wuhan, o Facebook terĆ” decidido deixar de bloquear as notĆ­cias que falam numa possĆ­vel intervenção humana. No entanto, o mesmo Facebook deixa um alerta: ā€œreitera que continuarĆ” a censurar todas as publicaƧƵes que considere serem falsas ou que sejam desmentidas pelas autoridades de saĆŗde, publicadas em grupos, pĆ”ginas ou contas pessoais – como acontecia atĆ© agora com a origem do Covidā€. Ou seja: nĆ£o estarĆ” aqui o Facebook a servir de ā€œmĆ”quina da verdadeā€, no entanto confundindo publicaƧƵes enquanto opiniƵes, que sĆ£o da ordem da liberdade, com publicaƧƵes com intuito orquestrado e corporativista de desinformação, que jĆ” poderiam estar ao serviƧo de agĆŖncias de comunicação? NĆ£o estarĆ” aqui o Facebook a impor um consenso em torno de um assunto em que nem a comunidade cientĆ­fica Ć© capaz de o fazer? Numa lógica Top-down, hierĆ”rquica, que autoridade tem o Facebook para decidir sobre a verdade e a nĆ£o-verdade quando os próprios cientistas e a sua representante maior (a OMS) nĆ£o Ć© capaz de fazer outra coisa senĆ£o ā€œsugerirā€ ou ā€œrecomendarā€ ao invĆ©s de impor?

O que quero afirmar Ć© que jĆ” existe um dispositivo legislativo, em Portugal como no resto da Europa (pelo menos), capaz de se adequar a todo o tipo de crimes em ambiente digital. Basta que se cumpram leis e se investiguem casos. NĆ£o Ć© com censura, imposta por Governos ou empresas digitais, que o mundo fica mais seguro da desinformação. Pelo contrĆ”rio: isto parece-me ser uma transposição da ā€œlegitimidadeā€ sobre a ā€œverdadeā€ na mĆ£o de poucos, com todos os perigos que daĆ­ possam advir. Por este prisma, qualquer Estado, ou qualquer gigante empresarial, porque detĆ©m legitimidade sobre a decisĆ£o do que Ć© ou nĆ£o ā€œverdadeā€, pode doravante impor uma lógica fundada no seu interesse, criando uma ā€œmĆ”quina de verdadeā€ com argumentos Ć  medida da sua contingĆŖncia (polĆ­tica, económica, estratĆ©gica, etc.). Ɖ isto o que se pretende ao colocar ā€œo Estado a assegurar o cumprimento do Plano Europeu de Ação contra a Desinformação de modo a proteger a sociedade contra pessoas que produzam, reproduzam e difundam narrativas consideradas de desinformaçãoā€? Mas qual sociedade? Mas qual verdade? Mas qual desinformação? Aquelas que interessam manipular na contingĆŖncia?

Assim, o resultado da adequação da lei n.º 27/2021, de 17 de maio de 2021, à Carta dos Direitos Humanos na Era Digital parece-nos óbvio: em nome do combate à desinformação, estÔ aberta a porta aos grandes interesses. Estados e grandes corporações encontraram, num fenómeno social jÔ antigo mas acelerado e propagado tanto pelos algoritmos (com interesses financeiros) de captura de atenção como pela dinâmica humana de partilha, imitação e propagação em ambiente digital, um caminho para reforçar interesses, criar necessidades e estender poderes através da censura do inconveniente e da legitimação do conveniente. Doravante, vencerÔ o intelecto contingente mais conveniente e não o mais necessÔrio, adaptÔvel ou verdadeiro.

Pedro Rodrigues Costa – docente e cientista social no CECS – Universidade do Minho

ReferĆŖncias:

[i] Ver mais em https://dre.pt/application/conteudo/163442504.Ā 

[ii] Ver mais em https://dre.pt/application/conteudo/163442504.Ā 

[iii] Ver mais em https://www.who.int/news-room/commentaries/detail/transmission-of-sars-cov-2-implications-for-infection-prevention-precautions.Ā 

[iv] Ver mais em https://dre.pt/home/-/dre/153493572/details/maximized?fbclid=IwAR2_MpHGN2jv07ggO5-17Y9QXMbIN9LuJegRkyHLtXe2t5dibjyEaj6Sx8A

[v] Ver a notĆ­cia em https://theblindspot.pt//2021/06/01/facebook-deixa-de-proibir-noticias-sobre-origem-do-covid-mas-mantem-censura-a-outros-dados-que-considere-falsos/?fbclid=IwAR2FDf4azKD_qn_f5FROwrqSBvFSfQmeX_AbRXHPizdEIwTacwib9AZwuIw