Skip to content

Artigo NEJM sustentado num falso caso assintomático não foi retirado e continua a ser citado mundialmente

Uma carta publicada no NEJM fez Fauci revelar ao mundo a mudança radical de posição, que tinha reforçado dois dias antes, de que os assintomáticos tinham sempre um papel secundário nas epidemias.

No entanto, esse estudo baseava-se apenas num caso de transmissão por uma pessoa assintomática, quando afinal ela tinha tido sintomas. Apesar de tudo, o artigo não foi retirado, nem retificado, e continua a ser partilhado como evidência.

Uma carta publicada a 30 de janeiro de 2020,  dirigida aos editores e publicada no New England Journal of Medicine (NEJM), reporta um caso de transmissão por um indivíduo assintomático.

Apesar de ser um estudo não revisto e apenas de um caso, teve uma enorme influência na perceção sobre a transmissão do SARS-COV-2 e nas futuras medidas adotadas.

Um dos principais motivos foi o facto de Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infeciosas e um dos principais membros da equipa destacada para o Coronavírus da Casa Branca, ter tomado o estudo como a prova decisiva sobre a transmissão assintomática.

Fauci afirmou:

“Não há dúvidas, depois de ler o artigo [do NEJM], de que a transmissão assintomática está a ocorrer” “Este estudo esclarece a questão.”

Esta declaração acontece apenas dois dias depois de ter minimizado a importância destes casos. Dizia na altura (29 de janeiro):

O condutor dos surtos é sempre uma pessoa sintomática. Mesmo que haja uma rara pessoa assintomática que possa transmitir, uma epidemia não é causada por portadores assintomáticos.”

Contudo, o estudo em que Fauci justificava a sua mudança de posição estava errado. Era baseado num falso caso assintomático.

O estudo “Transmission of 2019-nCoV Infection from an Asymptomatic Contact in Germany” era baseado no suposto contágio a partir de uma mulher de negócios chinesa numa visita à Alemanha. Na carta, os autores do estudo referiram:

“Durante sua estadia, ela estava bem, sem sinais ou sintomas de infeção, mas adoeceu no voo de volta para a China”

Essa informação revelou-se falsa. Como relatado pela Science, poucos dias após a publicação do artigo, o Instituto Robert Koch (RKI), a agência de saúde pública do governo alemão e a Autoridade de Saúde e Segurança Alimentar do estado da Baviera, contactaram a mulher chinesa depois da publicação do NEJM.

Acontece que a cidadã chinesa tinha realmente sintomas durante a sua estadia na Alemanha, quando entrou em contato com o alemão que adoeceu.

Nenhum teste foi realizado na Alemanha para confirmar se ela estava infetada com o novo vírus. Ela apenas foi testada para o novo coronavírus na China após o seu retorno da Alemanha e deu positivo para o vírus.

Confirmação e justificação dos erros pelos autores

Os pesquisadores nunca chegaram sequer a falar com a mulher antes de publicarem o artigo.

O último autor, Michael Hoelscher, do Centro Médico da Universidade Ludwig Maximilian de Munique, disse que o documento se baseou em informações de outros quatro pacientes:

“Eles disseram-nos que o paciente da China não parecia ter nenhum sintoma”.

O virologista Christian Drosten, do Charité University Hospital em Berlim, que fez o trabalho de laboratório para o estudo e é um dos autores, disse à Science:

“Eu sinto-me mal com o que aconteceu, mas não acho que alguém tenha culpa aqui.”

“Aparentemente, a mulher não pôde ser contatada no início e as pessoas acharam que isso deveria ser comunicado rapidamente.”

Pouco antes do episódio – dia 21 de janeiro – Drosten tinha sido um dos dois principais autores do artigo Detection of 2019 novel coronavirus (2019-nCoV) by real-time RT-PCR,”. Foi aceite para publicação no dia seguinte, dia 22 de janeiro, e publicado no Eurosurveillance.

O trabalho apresenta um protocolo RT-PCR para deteção do SARS-CoV-2 e uma metodologia de diagnóstico da doença. Este teste foi apresentado como de particular importância para a deteção de infetados, nomeadamente os assintomáticos, dada a hipótese de terem um forte papel na transmissão.

Atuação da NEJM após saber que o estudo era baseado numa assunção errada

Ao invés de retirar e divulgar uma nota editorial a retificar o erro da publicação, a revista apenas colocou a informação com a menção ao erro num Apêndice Suplementar referenciado no texto da carta.

Nele, os autores reconhecem que a empresária reportou ter sentido sintomas leves no final do primeiro dia e nos restantes dias de reuniões.

“Notou uma pequena dor “em alguns músculos e nos ossos do peito”…” (22 de janeiro de 2020)

“Ela mencionou que se sentia um pouco fria de manhã ao usar trajes de negócios leves.”

No entanto, o artigo mantém-se ativo, como o título e o seu conteúdo inalterado.

Citações do artigo

Deste modo, o artigo continua a ser citado, inclusive pelo CDC americano.

CNN mantém estudo online

Apesar de reconhecidas as falhas. O estudo continua a ser divulgado também na comunicação social.

A CNN, por exemplo, mantém a notícia online, a citação de Fauci e a linha de tempo (reconhecidamente errada).

O papel dos assintomáticos ainda está longe de ser esclarecido. Vários estudos referenciados, apresentam limitações importantes e um nível de evidência baixa, e têm apontado resultados contraditórios.

No entanto, é hoje reconhecido que a sua importância está longe da que foi avançada em alguns dos estudos iniciais e mais de acordo com o que se sabia sobre outras infeções respiratórias

Nota editorial: Contactámos a NEJM para pedir uma justificação para o artigo continuar inalterado. Recebemos a confirmação da receção do nosso email há cerca de duas semanas, mas não recebemos qualquer resposta até à data.

Imagem: NEJM (montagem)

Compre o e-book "Covid-19: A Grande Distorção"

Ao comprar e ao divulgar o e-book escrito por Nuno Machado, está a ajudar o The Blind Spot e o jornalismo independente. Apenas 4,99€.